sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Do ressentimento e outras coisas



     Tão fácil quanto esperançar-se veementemente por algo, é decepcionar-se com aquilo que não prevíamos na idealização do que se quer. As surpresas no meio do caminho de cada projeção nossa é um rompimento de dores meramente naturais. Mas como explicar da naturalidade das decepções para um ego enaltecido e enrijecido pelo tempo? Um dos frutos dessa mágoa é o ressentimento, que vai pouco a pouco corroendo o desejo-nosso-de-cada-dia de experimentar a vida. Isso se torna inexplicavelmente mais forte quando em relações amorosas, como se a presença do outro agravasse a compreensão primeira de si.
     A questão de debater sobre ressentimento amoroso não está na análise daquele que nos faz sentir mal, mas sim no conflito do ‘eu’. É mais fácil moldar um discurso de que foi o parceiro o culpado e que, se o parceiro tivesse agido de tal ou outra forma a relação se daria das mais perfeitas maneiras do que desconstruir a hostilidade interna. Isso é consequência da discórdia que adiamos resolver. Tomar coragem para colocar um ponto final na relação trágica que levamos em nós mesmos passa a ser mais temeroso do que o próprio enfrentamento do passado ressentido.
     É aí que se muda o itinerário a fim de descobrir uma solução razoável e possível para, de novo, conhecer a si e consequentemente, aceitar o mundo e as dores. Talvez essa seja a grande e única (?) missão do homem enquanto ser racional: encontrar-se em si e encaixar-se no mundo. Talvez nada importe das conceituações éticas e morais uma vez que, convencionadas todas elas, tão logo das suas mudanças será a reação do sujeito posto à realidade.  Ou ainda, a ideia seja não compreender sistematicamente o ensejo de existir, somente fazê-lo.
     Aborrecer-se com o que se viveu justificado pelo ressentimento é tornar-se doente no limite da impossibilidade de inverter os valores vividos, isso porque aquele que tenta, encontra-se enfraquecido e se faz escravo da insanidade mental. Se faz porque trata-se de uma escolha totalmente ligada às faculdades. Mais que isso, viver ressentido é tentar mentirosamente alterar o que já passou (mesmo sabendo que não conseguirá), revestindo-se de uma capa de pequenos males que cresce proporcionalmente com os adventos novos. Se a vida passa, por que não superar o sofrimento que ora a mente contemplou? E por que não tomar as experiências como tão só experiências? A resposta está na maturidade de admitir o mundo ou não. Só se contempla o mundo infalivelmente quando entende-se que não há e não haverá um destino fixo que determine qualquer nova decisão e que, apostar em novas capacidades e aventuras não é nada além do que viver o mundo real, ignorando o que se supõe idealmente ser.
     É preciso, portanto, falar mais de si e, às vezes, egoistamente, assumir a natureza humana má para daí compreender um terceiro. Falta mais silêncios repletos de reflexões e acima de tudo, de tempos eficazmente usados quando só. Não há absolutamente nada de errado em criar expectativas, desde que se saiba lidar com as consequências de cada ação tomada. Não é nenhum mínimo estranho o querer do outro na medida das suas necessidades. No entanto, o que é realmente importante para que no fim de cada história, de cada micro conto ao vivo e pessoal, não se desenvolva o ressentimento? Isso não é auto ajuda barata e politicamente correta, é só uma maneira de se entender com a existência. Repito: é necessário conhecer a si e consequentemente, aceitar o mundo e as dores. Viver é sofrer. Viver é sofrer depois de amar. 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Meu bem...

   


   Meu bem...

É que na verdade, minha visão não sai dessas suas mãos macias e delicadas que tem contornos angelicais. Até suas unhas rosadas me chamam à atenção na medida que teus dedos contornam linhas imaginárias sob a mesa azul. E conforme subo o olhar pela trilha dos seus braços cheios do ar protetor, chego, pouco a pouco, ao pescoço que vislumbro com sagaz atração, imaginando a textura da pele.

É que na verdade, eu viajo ao longo de muitas das suas falas observando o secar dos seus cabelos castanhos claros com tons louros. E ao passo que secam pelo soprar do vento, os fios vão se ondulando infantilmente, delimitando uma face doce. E eu constato que sua expressão pura e límpida me faz sentir tanto desejo quanto com outros homens que já vi. Vou me perdendo de mim, me encontrando em ti, me contorcendo nos sentimentos imanados da alma. Eu sei, são vindos dela.

É que na verdade, sua sobrancelha tem uma figura irregular que prova sua existência como um presente exclusivo. E admirar seus olhos me fixam no mundo turvo lá fora, mas nada disso importa agora. E seus lábios se abrem delicadamente em cada frase e, cada palavra soada pela voz mais rouca e poética exaltam todos os sons que meu ouvido já pôde ouvir.

É que na verdade, eu te espio caminhar para a saída maldita que te leva pra tão, tão longe, sabendo que não estará tão distante assim, contudo meu ardor te traria tão perto quanto possa a física imaginar. E nem todas as ciências explicariam a beleza que enxergo no seu puro agir. E você é todo meu, todo meu.

É que na verdade, sua existência alegra minhas manhãs todas as manhãs e torna manhã todas as tardes frias que me fazem querer a ti para um debate filosófico. E no tempo em que te sonho, eu também te santifico pedindo a Deus que te traga como graça e misericórdia. E para cada suspiro refaço as mesmas orações na insistência de receber uma benção.

É que na verdade, às noites eu suo frio sonhando com um toque seu e depois outro e alguns beijos e abraços apertados e quentes. E durante minhas ilusões, eu fantasio um lugar perfeito sem males ou decepções ou qualquer saída maldita nos afastando. E cada vez que relembro que há hora de partir eu sangro rasgada pela espada da traição da vida. E eu imploro para que fique, somente fique...

É que na verdade, cada vez que as circunstâncias te põem em meu caminho, eu adoeço procurando agir da melhor maneira pra te encantar com a menina que sou. E sempre que me dirijo a você eu me encanto com sua fisionomia complacente que causa espasmos em meu corpo magro e pequeno. É que minha fragilidade se encaixa no seu vazio amoroso.

É que na verdade, minha garganta enrosca toda vez que tenho que dizer um ‘oi’ calmo e apaixonado. E eu me enrolo toda nos pensamentos, tudo por sua culpa. Me torno boba sempre que você se esbarra comigo no corredor. E eu te estudo novamente, alto, belo, calmo, reluzindo. Me diz um ‘até amanhã’ e eu imagino um amanhã domingo.

É que na verdade, eu te projeto ao meu lado aos sábados à noite e nas segundas chatas. É que tão forte quanto o querer do presente, maior é minha esperança por ti no futuro. Como o homem, o mais vívido homem que eu pude sonhar.

É que na verdade, eu anseio tanto quanto minha fé escutar suas narrações das mais belas cartas poéticas que se escreveram na literatura. Enquanto isso, transcrevo todos os meus pulsos apaixonados num poema sem forma e sem juízo. E vou vivendo intensamente cada parte dessa saudade amarga que me corrói.

É que na verdade, eu assisto e reassisto suas fotos das mais novas às mais antigas pensando ser a fotógrafa de cada retrato seu. E para cada detalhe das imagens eu te desenho no meu Éden particular. Te crio e recrio mil vezes por dia. Te vivo internamente o tempo todo.

É que na verdade, sua resistência a mim gera tanta tensão quanto o aumento proporcional da minha volúpia insana. E sua fuga aflora meu instinto caçador e dominador tanto quanto o meu exponencial cuidado maternal. Teu sorriso me desperta a mais singela gana de fazer-te os melhores pratos e refeições cozidos todos com o máximo de carinho.

É que na verdade, minha ânsia é acarinhar-te durante o sono e ter mais de uma chance para fazer isso. É sentir-me sua mais ávida cuidadora. É ser amante. Meu apetite e minha sede imploram seu simples ‘estar’, seu mísero ‘existir’. Teu cheiro, tuas vestes, tuas cores... De onde vêm suas excelências?

É que na verdade, eu permaneço numa cápsula hermética cheia dos teus méritos e aspirações. Suas vitórias, suas virtudes, suas garras são troféus de honra para o meu orgulho incessante. Suas leituras, sua musicalidade, suas referências, seus filmes, seus talentos, seus dons são transposições divinas e eternas.

É que na verdade, eu arquiteto situações para te encontrar e tento, sinceramente, fazer com que você me ame ao menos um terço da intensidade do que sinto por você. E eu vou tentando ser mais da sua essência a cada novo segundo. Ah, se você soubesse das tantas coisas que faço por ti...

Na verdade, na verdade, você é meu bem...

E eu te quero...


Essa é a verdade! 

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Sem Título



Não fugirei.
Mesmo que por vezes, desvairada, eu me desespere.
Não disso. Não assim. Não fugirei.
E até quando as palpitações tornam-se reais
e não saber o que fazer (para fazer)
é um medo - do contrato,
ainda assim o desejo é outro.

Erroneamente eu me calei
não por maldade
nem por algo que seja inerente e inato,
mas porque o que sou
justifica-se no eco.
Eu tenho o que dizer
E muito o tento fazer.

Me veja: entenda, observe, admire, se fascine
Um sentimento mudo
que me muda e
me repreende.
Um desejo!
É! Deve ser mesmo isso!
Sede, ânsia, gula.

Será então
Que posso ousar e ousar
E questionar-lhe do tempo?
E ter mais silêncios conjuntos
e um último calar?
Se sim, revelaremo-nos
Adoramo-nos tanto
E Carlos, por fim sossegue, sossegue mesmo,
o amor
é isso que você está vendo. 




segunda-feira, 11 de julho de 2016

A VERDADEIRA HISTÓRIA DE JANAÍNA


A esperançosa Janaína acorda todos os dias às quatro e meia. Não porque gosta, mas porque estudar durante o dia em seu quarto é tarefa de gente louca. Em casa pequena, barulhos são compartilhados e, ela ama o silêncio. Portanto, combina a alvorada com a leitura e a escrita. Em contrapartida, os pais dela não perdem a programação da Globo: a mãe ama Vídeo Show e o pai, a Novela das Nove. Daí, esperta a Janaína, se deita com as galinhas para se levantar com os galos.
O período entre o descansar e o despertar da jovem lhe trazia o sentimento de que o dia não passou e de que nada aconteceu. Deve ser falta de diálogo. Com tantos horários atravessados, mal conversa com a família, preocupando-se mais com a retórica dos textos e a comunicação de quem lê. Janaína é jornalista.
Para ir à central de redação do jornal Gazeta do Povo onde trabalha, pega ônibus e trem, ambos em horário de pico. Porém, além do tempo usual que divide nas estações e pontos, ela se vê obrigada a fazer reportagens urbanas que atualiza os leitores de como anda o trânsito e a disposição dos meios de transporte.  Cobre fatos policiais inusitados e paga as contas da família. Ou seja, passa as horas do seu dia em trens lotados, filas de supermercados, bancos e repartições. Segundo ela, isso só reparte a vida.
Dedica-se cautelosamente às experiências cotidianas para atrair novas oportunidades de emprego e também, quem sabe, chegar a ser uma jornalista famosa. Nem de longe quer relatar fofocas, todavia anunciar a previsão do tempo não lhe parecia má ideia. Apesar de tudo, ela tem grandes sonhos e diz que um dia há de ser feliz, se Deus quiser!
No fundo ela tem chances, sabe? É uma ótima oradora, escritora e articula muito bem as informações em falas simples e claras. Sem contar seu senso crítico: é uma excelente comentarista. Em resumo, é um docinho de pessoa. É beleza de gestos, abraços, mãos, dedos, anéis e lábios. O sorriso solto que escapa do rosto a faz amada por todos.
E se ainda mora com os pais suportando a barulheira da TV, é porque os ama e porque não se casou. Já esteve noiva, mas foi traída. Passados cinco meses do incidente e tentando se recuperar do ocorrido, conheceu um rapaz do departamento de saúde e vida. Tiveram um caso, mas ele disse preferir outra coisa. De fato, Janaina é só lembrança de amores guardados. Hoje é apenas mais uma pessoa que tem medo do futuro. O que aconteceu? Alimenta-se do passado.
Ocorreu em certo dia, já na iminência de outro aniversário, de receber uma ilustre ligação. Era noite e ela abria a porta de casa após o cansativo expediente. Os pais assistiam uma programação nova que contava com a participação da banda Biquíni Cavadão se apresentando ao vivo. Aproximando-se dos alto-falantes da televisão, percebeu que cantavam a música Janaína. A sua música. A sua descrição. A sua rotina.
Quando soou o telefone, afastou-se um pouco em direção à cozinha. Era o Zé Ricardo, redator-chefe da seção de colunas e opiniões. Ele anunciava a promoção da garota. Tornava-se a nova crítica literária do jornal Gazeta do Povo. Encerrando a ligação, vibrante com a boa nova, corre para contar aos pais a mudança de um cargo para o outro superior. Enquanto se apressa, enrola-se despercebida nos fios da TV e drasticamente cai. A força aplicada nos filetes faz com que eles sejam arrancados brutalmente, ocasionando um breve curto circuito que queima o televisor. Em um sossego nunca antes experimentado, Janaína que está estendida ao chão, gargalha como uma vampira sedenta de sangue fresco, enquanto os senhores progenitores urram em desespero. Ela que está esticada ao chão, sussurra para si:
— Graças a Deus!


(1)     Em referência à letra da música Janaína do grupo Biquíni Cavadão.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Política Familiar



               Numa noite histórica debatiam mãe e filha da desordem nacional:
               — Balela! Ela sair dessa maneira? Duvido muito...
               — Ah, mãe, seja sincera: há motivos, não há? Há uma massa almejando por isso, não há?
               — Há, há. Contudo, miudinha, as coisas não são assim. Olha, sente-se. Enquanto eu preparo o café você vai me ouvindo.
               Sentou-se a menina. Curiosa, astuta, participante sem faltas do clube de debates políticos do colégio Marechal Rondon e, sem menos desprezo, filha da D. Maria Bernadete dos Anjos, a mais ávida ouvinte da rádio A.M Meridional. O que isso significa? Que era reclamona. Sim, de tudo, de todos. Entretanto, sábia por 48 anos excitantes de vida, podia prever das consequências de movimentos momentâneos de oposição. Bradou:
               — Aos meus 16 anos, secundarista do Cecília Meireles, ajudante de impressão do jornal local curitibano e apaixonada por seu pai, ia eu saltitante pela Av. Sete de Setembro e...
(PAUSA)
—Vai mamãe, termine!
               — Ô garota apressada, a água está fervendo, me deixa acrescentar o pó.
               Menina danada. Desde pequena não sabia esperar. Arrisco dizer que a juventude anos 2000 é bem desse tipinho. Sem estratégia, sabe? Não é A + B, para eles, A é quando se quer A e B, quando se quer B. Não, não! É A + B, ou seja, planejemos com cuidado passo a passo, degrau a degrau e pronto, um C rechonchudo de vitalidade. Essa juventude, viu?!
               –– Vamos lá. Ia eu pela Av. Sete de Setembro quando uma renca de garotinhos branquelos, mocassim de couro, óculos Ray-Ban, gritavam: Eu quero votar pra presidente DIRETAS JÁ! DIRETAS JÁ! Eu quero... E berravam a frase. Mas sabe de uma coisa minha filha? Collor de Mello, nosso primeiro presidente eleito pelas Diretas Já foi impeachmado. O que você conclui?
               Muxoxou a garota, olhou para o teto (teias de aranha) e o cérebro maquinava (teias de aranha). Foi confiante:
               — Ora mamãe, ele foi um mau presidente e portanto, tiraram ele. Normal!
               — Normal, amada? Não, não! Pode ser tudo, menos normal.
               —O que a senhora está tentando me dizer?
               —Que nossa democracia, jovenzinha demais, impopular demais, frenética demais, moralista demais, justiceira demais, enfiou seu amado país num buraco bem feio, para não dizer outra coisa.
               —Ah, entendi: o impeachment do Collor não foi tão bom assim, uhum. 
               —Não, você não entendeu foi nada. Que merda Carolina! Vamos tentar de novo. Os ‘Cara Pintadas’, já falaram disso no seu clubezinho de política? Enfim... Espero que sim. Esses aí, quem eram esses aí? Classe média, teóricos da ética. Pobre que era pobre estava trabalhando. A política minha filha, me deixa te falar uma coisa, não é completa e nunca vai ser, porque quando for, então deixará de ser política. Política, Carolina, é uma vontade imensa de tentar organizar as cartas do baralho de forma que elas fiquem estritamente marcadas. Povo é povo e só serve para eleger. A política é insaciável tanto quanto o próprio eleitorado. É desejo, é platônico, é aristotélico. É luta. Sim, Manin falou de luta. E se você não falar de Manin no seu clubezinho eu mesma irei lá e...
               —Mãe, foca no que você tem de falar, debatemos do ‘clubezinho’ depois!
               —Está bem. O fato querida é que, em 92 aquela mesma molecada estava pedindo a saída do Fernando. Pouco mais de dois, D-O-I-S míseros anos. O cara saiu. PSDB e PT. Virou esse inferno. Um rombo do tamanho... Deixa para lá. Prejuízos. SÓ prejuízos. Já tivemos ditadura, constituição feita à mercê de interesses bonitinhos dos partidos novos, uma república mal implantada, golpe, golpe, golpe... Eu só quero que você entenda que uma coisa é uma coisa e outra é outra e, agora não é hora de fazer o que estão pretendendo fazer. Não é hora de outro impeachment. Te falei tudo isso para você colocar nessa sua cabeça de vento que não é hora. Nós merecemos o melhor, sim, óbvio. E o que é o melhor? Menos um ou menos dois? A mudança vem de dentro, atravessa essa carne macia e exalta o mundo. E assim vai andando a história lado a lado de sua melhor amiga, ela se chama PODER. É tudo tão recente, precisamos entender tanta coisa sobre a malícia política. Ah, minha filha... Será que você me entendeu?
               Silêncio. Pequenos serezinhos se mexiam no espírito da menina e, o que menos se encontrava por lá, agora, era samba. Matutou sozinha: Eu sou do povo, eu sou um Zé-Ninguém! Que orgulho sentia da mãe. Que feliz era de ser brasileira. País abençoado, não é? Silêncio. Mais silêncio. Acabou soltando:
               — Mãe, você quer ir comigo no Clube de Política na quinta às 8?
               Sorriu a senhora. A menina havia compreendido a mensagem. Gargalhou estridentemente. Ela já era uma mocinha.
               —Claro, claro! Ah, mas que honra! Que honra! Vou até... – fora interrompida por uma vozinha medonha.
               —D. Maria Bernadete, a senhora sabe de uma coisa? Esquecemos do café! – lamentou Carolina.
               —Ah, minha nossa! Não é que esquecemos mesmo? - chacoalhou a cabeça. Não obstante, completou:
               — Liga a TV, vai, tomamos o café da tarde contemplando o show nosso de cada dia!
Alegraram-se as duas.

               



quarta-feira, 8 de junho de 2016

O DESINVENTAR DA LITERATURA

       
      
                Após uma pequena temporada de dias direcionados somente a escrita e a leitura, tempos antes de me dedicar completamente ao curso de Direito, fui tomada de uma reflexão empírica dos fatos decorridos naquele verão. Concluí, certeiramente, de que compor, aquilo que vinha eu fazendo todas as manhãs e tardes na biblioteca Monteiro Lobato, era uma fragmentação total do que já fora, do que é, e do que há de ser. Transpor ao papel as experiências vividas, aquelas ainda no campo das ideias e as outras roubadas bondosamente das essências pessoais de amigos, eram afinal, uma grande e agradável desinvenção.
               Descobri, infinitamente alegre, que a literatura, e suas obras, decerto são todas um imenso acervo acerca de esmigalharias, estilhaços moídos de centenas de concepções, ideias, abstrações e idealizações. Criar, conceber de si uma produção todinha sua, demanda do autor ou daquele que rege as invencionices, uma habilidosa coragem de tomar para si um tanto do outro. O literato, deve sem timidez, possuir os ares da natureza, as paixões secretas, as fantasias perigosas e, dissecar tal qual o anatomista a percepção de um terceiro, deixando tão claro suas histórias, que até mesmo aquele no qual fora inspirado a escrita, fica boquiaberto com tamanha compreensão do poeta.
               Até chegam a dizer: ele escreve como se tivesse vivido toda a minha vida! Contudo, o cronista, o contista, o trovador e toda a raça das letras, nada viveu do outro, tampouco vive a sua. Na verdade, esses se escondem em quartos repletos de livros, papéis, papéis e livros. Hora ou outra, buscam uma praça, uma biblioteca e na dúvida, segue faceiro para uma livraria. São comumente pouco vistos. A questão é que, desinventar foi a minha fascinante descoberta a respeito dos escritores. Um paradoxo onde criar significa despedaçar algo, no intuito de analisar, raciocinar, das palavras, do porquê, do fim e do sistema do objeto examinado. Em seguida, com as partes ali, desmontadas, tipificadas como Weber ensinou, se pode, finalmente, TRAMAR.
               O escritor vai sumindo (não porque se tornou insociável), porém vai desaparecendo, perdendo a cor, se tornando invisível, morrendo em si, para então, assim, sem se ver, ser capaz de enxergar tudo e todos, como se fosse o próprio Deus. Ele é o Deus da sua novela, ele dá a vida e a tira. Ele permite, porém zangado, descria. É o portador do sopro vital, que leva ao paraíso ou ao inferno. É o julgador e, também o próprio juízo. Sua consciência, saciada de desejos literários, despidos do pudor dos poemas, das poesias, dos versos não rimáveis, anti barroco, pornograficamente cheios de curvas dramáticas, sussurra com voz de donzela:
               — Desinveste-se, desinveste-se!
Ele, apaixonado, cai em tentação. Viaja por mundos em momento algum tidos como seus. Extraviado de quem nascera, agora é qualquer um. É Gatsby, é Mr. Darcy, é Brás Cubas, é Dreyfus, é Harry Quebert, é Dom Pedro I. É Marcela, é Jane, é Capitu, é Charlotte, Ilsa Lund, é Júlia. Pode ser tudo, menos ele. É todos, contudo não é só ele. Desinventou-se, oras! A arte literária lhe exige isso.
               E, consequentemente, depois de haver aprendido dessa chave, jamais morre. Um escritor só pode ser morto por um outro, mas nunca por si mesmo. Até quando acha que perdeu suas forças, que não sabe mais escrever, praguejando que sumiu seu talento e já não tem mais inspiração, mesmo aí, desinventando-se novamente, reavive em si o fogo da ficção.

               Eu, por mais repleta de tarefas que esteja, por mais farta das leis, dos códigos, das jurisprudências, das doutrinas do Direito, por mais ávida atuante, não deixo de ser o que quis ser: e-s-c-r-i-t-o-r-a. Solto sempre por onde passo, um conto, uma crônica, uma fábula, porém nunca, um nada. Ser escritor é um modo de vida e não exatamente o fato de ter lançado fabulosos best-sellers adaptados cinematograficamente. Quantos Drummonzinhos se escondem pelas ruelas brasileiras? Alguns, infelizmente, não serão nem descobertos. O escritor, o verdadeiro escritor, desinventa-se de si para ser, idealmente, ele mesmo e quem mais ele desejar ser.

CONCISÃO

Line Drawing - Picasso 


PRÓLOGO
A vida é linear. Seu fim é um mal súbito. O início de alguém é a morte de outrem. Ser é fingir. Isto é a concisão.
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Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso.

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Maria morreu no dia 29 de dezembro de 1923. Suicidou-se. Não entenderam seus vizinhos o porquê. Tinha 34 anos. Nenhum filho. Nenhum cachorro. Nenhum gato. Nem marido. Nem mãe. Nem pai. Nem avós. Nenhum irmão. Nenhuma irmã. Não tinha amigos. Não tinha casa. Não sorria. Não amava. Não era bonita. Não se via. Não existia.
Escrevia. Bebia. Fumava.
Portanto, suicidou-se. Não entenderam seus vizinhos o porquê. Tinha 34 anos. Atirou no peito, o centro dos males, na Praça Quinze de Novembro no Rio de Janeiro.

*
Decidiu em 1922. Encerraria de vez essa desordem. Levantava-se, rodava pela sala que lhe dispuseram em 1921 em troca de serviços na Hotelaria Gamboa, sentava-se, levantava-se novamente e assim, seguia sua andança pelo cubículo. Era uma saleta ao fundo do depósito de alimentos, úmido, mofado e sem ventilação. Ali decidiu que iria morrer. Se até a data marcada a vida não tomasse partido, ela mesma faria o serviço. Por admirar a Praça Quinze de Novembro, afirmou para si que ali seria ideal.

*
Em 1920, jogando a vida com o destino, sofreu xeque-mate. Amava as escondidas Gilberto, o cozinheiro da Hotelaria Gamboa. Era casado o homem. Certa de que não seria adúltera, o admirava somente. Nada mais.
Porém, tornou-se o varão repentinamente tísico em último estágio, morrendo em poucos dias. Maria desejava no jogo do desdém ao menos a posse da companhia no falecimento, o mais baixo dos quereres. Nem isso teve.
Não foi ao enterro. Sentia inveja da esposa, Gilberto morrera em seus braços. 

*
Este é o relato do único prazer experimentado por Maria.
Conhecera Alberto na Rua do Ouvidor. Andava tão depressa o moço, que seu lenço voara sem que ele o desse por perdido. Maria, que saía de um entroncamento, tomando o lenço ainda no ar, deduziu pela inexistência de qualquer outro senhor naquele instante, que fosse mesmo dele o encontrado. Acelerou o passo e o chamou freneticamente. Tinha pressa também. Desejava chegar à Gamboa antes que Gilberto partisse. Trocar saudações com o amado era para ela o ápice da satisfação.
Alberto subitamente tornou-se para ela, tomou-lhe o lenço, agradeceu e seguiu novamente. Não dera muitos passos para que pudesse retornar. Gritou a mulher que ia longe. Alcançou-a. Ela deu-lhe a atenção. Tomou ele sua mão e a acariciou. Mas também achegou-se nela. Ela, confusa, cedeu. Beijaram-se. Soltou-se dele depois de já ter saciado o desejo. Correu. Não se viram mais.

*
Em maio de 1910, aos 21, imaculada, com a mãe doceira prestes a findar-se, caminhando num beco da Glória, foi assaltada por um pirralho negrinho. Tomou-lhe o moleque seus únicos tostões para pagar à mãe a visita de um médico. A mãe morreu na mesma noite. Desinfeliz do negrinho!

*
Maria foi concebida em uma relação canalha. Revelou a mãe, Inês, em 1909, que não, o pai de Maria não havia morrido. Provavelmente estava bem vivo. Carlos era da Infantaria do Exército. Passou uma temporada no Rio com a guarnição em meados de 1888. Encantou-se com Inês e prometeu a ela que desistiria da vida militar para que pudessem fugir juntos.
Inês era só. Sem pai. Sem mãe. Recebia ajuda de boas damas que lhe deram abrigo desde que nascera. Agora, aos 15 anos, estava apaixonada e pretendia partir. Contudo, para sua inocente surpresa, a guarnição retirara-se um dia antes da data marcada rumo a São Paulo e junto fora Carlos, deixando buchuda Inês. Chocou-se Maria. O pai era um desgraçado!

*
1900. Primeiro dia do ano. Sentia-se estranha. Mal quista. Mal vista. Sem jeito. Sem inteligência. Era uma pobre infeliz. Não fez nenhuma promessa. Para quê? Nada que desejasse viria realizar-se. Abraçou a mãe, abraçando a mãe à filha também. Não perderam tempo. Foram confeitar doces para vender. Questão de sobrevivência.

*
Três de fevereiro de 1889 às 8:41 da manhã. A parteira Francisca mostrou luz à Maria do Carmo de Oliveira.

*

“Jornal do Brasil, 29 de Dezembro de 1923, Rio de Janeiro.
Passados quinze dias desde a assinatura do Pacto de Pedras Altas, o Rio Grande do Sul vive relativa paz após onze meses de tensão política”.
Não noticiaram a morte de Maria.

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EPÍLOGO

Não se engane, leitor. Maria não morreu de solidão. Morreu de satisfação. A narração fora tão concisa até aqui que se esquecera de esclarecer os fatos.
Maria era tão feliz com tudo, apesar da miséria, da má sorte, da solitude, que certo dia, indignada consigo mesma, com tamanha frieza e insensibilidade em relação as coisas que lhe ocorreram até ali, que achou-se má. Era uma egoísta desalmada.

— Qual que nesse inferno de vida gargalha todos os dias? Sou louca, ora! — Bradou.

Diagnosticando-se erroneamente como mentecapta, encerrou-lhe a vida por incompreensão. Maria era, na verdade, conformada e não louca. Suicidou-se por concisão. Tal qual foi o espanto dos vizinhos. Besta!

*

A concisão é o mal súbito da vida. Chama-se morte. 

quarta-feira, 1 de junho de 2016

#EstuproNãoÉCulpaDaVítima


#EstuproNãoÉCulpaDaVítima

ANTES     
           
Minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Essa foi a época em que morei numa residência totalmente feminina e empoderada. Éramos três em número e geração: filha, mãe e avó. E sem medo de errar, reafirmo: minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Digo isso porque hoje sei convictamente das condições da existência, dos embaraços das idades e das adversidades que há entre as pessoas.
                Era um período de hábitos e costumes rígidos. Afora isso, sentia-me bem amada e contente. Essencialmente, eu me levantava às quatro da manhã e me deitava às nove da noite. ‘Quatro horas da manhã?’, pasmados estão aqueles que leem isso. Sim! Às quatro porque acordar antes do sol nascer me fazia crer na esperança de dias melhores e na benevolência do mundo. E também às quatro, porque no instante das duas horas até que a cidadela acordasse absolutamente e que do lar todos despertassem, eu tinha o espaço e o tempo necessário para limpar e organizar tudo, cumprindo assim, meus deveres domésticos diários.
A situação se parece tão absurda, insensata para uma criança de doze. Coisa alguma! Para mim, era divino. Uma rotina gloriosamente adulta. Nada disso era um estorvo. O que digo é que esse modo de vida fazia-me a pessoa mais feliz no mundo.
Eu era uma adolescente que ignorava a problemática dessa fase em máscaras cronológicas. A adjetivação de ‘turbulência’ para o estágio de amadurecimento é uma tentativa de ultrapassar o sentido substancial da palavra e abranger o mito da dura e cruel transição da infância para outro ciclo. E não digo um ciclo superior, mas um ciclo ordinário.
Eu era feliz porque para mim o mundo me era lícito, agradável e seguro. Porque estar cercada de mulheres veementes e intensas me tornava uma jovem heroína. Porque apesar dos pesadelos que me assolavam todas as noites, às quatro, quando eu me levantasse, eu renasceria do dia anterior e tudo estaria bem novamente. Era feliz porque eu me sentia completa pela plenitude da família, não precisando de mais ninguém para nos fazer sentir como uma.
Era prudente também. O era porque o hábito e a rotina significavam uma naturalidade onde os fins justificavam os meios. Porque essa mesma rotina me dignificava na consciência infantil. Porque eu simplesmente não entendia dos temores que passam ter as mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres. 
Eu fui feliz. Fui feliz até meus 14 anos.

DURANTE

Flashbacks.
Estou viva? Por que meus braços não respondem aos meus estímulos? Minha boca não fala as coisas que estou implorando que ela as diga. Por que desaparecera minha voz? Eu não consigo reagir. O que está havendo?
Flashbacks.
“Não, eu não quero”. “Não”. “Pare”. “Me solta”. “Me deixa ir embora”.
Flashbacks.
Estou me opondo, porém as forças são nulas. Quem é você? Eu não sei quem você é. Eu não te amo. Quem é você? Quem é você?
Flashbacks.
As luzes se acendem e se apagam freneticamente. O QUE ESTÁ ACONTECENDO?

DEPOIS
Eu fui feliz. Fui feliz até meus 14 anos. Fui porque simplesmente eu não entendia dos temores que passam ter as mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres.  Afinal, o que as tornam adultas? A natureza de cada uma ou a tragédia que advém a todas elas?
Eu me tornei aos 15. Forçadamente, é o que eu quero dizer. Deixei de acordar às quatro e de me deitar às nove. Adultos são inconstantes, portanto não têm horários fixos. Dependem de suas consciências machucadas. Quando as feridas param de latejar, dormem. Se latejam por uma vida inteira, nunca descansam então. 
 Após o acontecido, mudamos de casa. A que eu limpava com tanta disposição e que me protegia da loucura da cidade se despindo às seis. Minha segurança extinguiu-se num ato irremediável. Nós — filha, mãe e avó — deixamos de ser felizes. Isto porque uma sombra terrível encobertou nossa família que, mesmo com tudo, não deixou de ser independente e autônoma.
Não digo muito mais desse ciclo ordinário posterior porque não tenho desejo. Nem meço aqui minha desgraça e flagelo, porque não sou capaz de fazê-lo. Meu drama é um infortúnio das criaturas vivas. Uma tragédia.
As circunstâncias da vida, citadas dezenas de vezes pelos poetas esquálidos e inertes, me entregaram ainda tão jovem, tão criança, para os braços do destino. Para quê? Não sei. Somente sei explanar o quanto me tornei infeliz e amargurada.
Este relato é sobre como é passar a acordar às quatro sem que o pesadelo magicamente desapareça. Isto é sobre ser violada. Este relato é para dizer que minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Depois disso, eu me apaguei.


#EstuproNãoÉCulpaDaVítima

domingo, 22 de maio de 2016

PROMESSA

Girl with Hair Ribbon - Roy Lichtenstein
1965

     E eu prometo por mim mesma que, a partir do dia de amanhã não serei mais eu. Não esse eu de agora, nem com essa tristeza de hoje, e sim como um novo dia que reflete aos olhos. Grande promessa a minha. Já havia dito isso grandes pensadores há muito tempo e agora eu repito. Quão sábia sou. Não por repetir, mas por decidir. Mudar. Dói? Mudar? Sim!
     É estranho sair do conforto, no entanto minha mente foi ensinada a viver ocupada, assim não pararia como uma máquina sem combustível. Mas minha alma se mexe e se bate tão ofegante e nevosa que sinto dó e extrema tristeza. Não sei descrever, mas preciso agir. Fazer acontecer e realizar.
     O que faço pra sentir esse prazer da felicidade? Ah! Se eu pensar morrerei como tantos outros que tentaram. Só quero descobrir algo para fazer e fazer, por que o que mata é não saber. E concluo: desejo o verbo em minha vida como o peixe à água e as nuvens ao céu. Que os deuses das religiões me ouçam e empurrem lá do outro plano o pó do despertar, e que assim eu surja da escuridão da mente e apareça na claridade do viver.
     E disso declaro ser verdade.


Esse conto também foi publicado anteriormente* como presente e homenagem no blog Carta Aberta, organizado pelo querido Hernandes Augusto da Silva.

*Para esta republicação, houve alterações de palavras

quinta-feira, 19 de maio de 2016

CHAOS

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA - SALVADOR DALÍ 


                                    Não sabia exatamente se preferia narrar a história em primeira ou terceira pessoa. Se em primeira, fundamentaria elementos estéticos para que eu pudesse ser enxergada como completa pelo simples fato de estar vazia. Era a questão do paradoxo. Deixou mais bonito os textos que li e que admitiam esse método. Já se em terceira pessoa, abusaria dos eufemismos que minimizariam a pena que sentiriam o público. Definitivamente, a pena me causava desgosto. Repulsivo e ignóbil. Mesquinho demais para ser auferido por alguém. Sentimento meia-tigela advento de uma ignorância lírica. Escreveria. Iria escrever. Diários andavam salvo da moda, pensar em um me fez cansar. Nada de diários. Mas eu precisava contar, contar por qualquer meio, os sufocos joviais antes que minha falha memória expurgasse o tema.
                                    Me era confuso a premissa ‘ser ou não ser, eis a questão’. Sei que de fato o texto original não tencionava tamanho cunho filosófico-romântico e, a tradução aportuguesou o belo pelo complexo, a admiração pelo difícil. Hamlet para lá, eu mesma consenti em cair nessa peça. O que formalmente, não compreendia. Fazia por emblema. Na verdade, ele quis dizer: ser ou estar, eis a questão... Assim, então, que em uma madrugada alheia me vi na necessidade de perder uma noite de sono em prol das ponderações de juízo pessoal. É que eu estava deixando de perdurar a autopoiese para ter o que me convinha. Estava e não era. Consequentemente, deixei de viver. Faleci de mim sem direito a velório ou no mínimo, um discurso de despedida. Que absurdo! O que pensaria meu pai, que lecionara por trinta e seis temporadas a doutrina do ‘encontrar o vivaz’. Seria repreendida, óbvio!
                                    Estando desabitada de ânimo e ao ser soprada ao relento sem nenhum cuidado, eu ia cultivando uma rotina encharcada de engajamentos dúbios e tristes. Quem sou? Responda menina, responda! Okay. Lá vai. Sou aquela que acorda às cinco na marra, contudo acredita na essencialidade das manhãs, no canto do galo e o raiar do sol visto da cadeira de praia, do alongamento matinal, do cobertor e leite quente aproveitados sob o muro. Essa sou eu. E quem estou? Acordo às sete. Atrasada, atordoada. Pense no salário, pense no salário. Engula tudo, não mastigue. Corra, corra! Olha o ônibus! Agora corra de verdade. Sente-se se der. Tome sol se der. Observe sempre. O conjunto vazio é maior do que eu imaginara. Uau!
                                    Eu sou quem lê dezenas de livros mensalmente, que aprende as artes cênicas mimificando as expressões relatadas pelo escritor. Transpasso a felicidade literária para a realidade inquieta de encontros amorosos. Amo meus tios. Tenho poucos. Minha mãe carece de atenção. Conversamos sobre economia, política e chow-chows. Finalizamos a receita prometida, o cappuccino no centro da cidade e a casa por faxinar. Vó Vanda caminha mais de três quilômetros numa tarde para visitar os netos e presenteá-los com bolo de cenoura coberto de calda de chocolate. Fazemos festa quando ela vem. Trocamos ilegalmente a posição dos cactos no quintal e tagarelamos sobre os senhorezinhos que circundam lá pela vizinhança dela não se esquecendo nunca de dar suas agradáveis saudações.  Quem estou? Não vejo tia Claudete passa-se de três anos. Dizem que depois que me mudei para cá, dois primos se casaram e uma já tem uma filhinha que pronuncia ‘florzinha’ antecipadamente à mamãe. O tempo voa, no final das contas. O médico recomendou menos esforços à vovó pelas questões cardíacas. Neste ano só um cacto floresceu. O clima está mudado. Afetou estes e também os desertos pelos quais ando me enfiando. Mainha está jururu. É evidente. Estaria em seu lugar.
                                    Murchei. Minha flor não quis desabrochar. Não, não e não! Não aceito isso. Nada de teorias conspiratórias, tá? Ser sem complicar. Quem foi que disse que a simplicidade não é complexa? Ela mora no município da paz e exige de você no mínimo resquícios de amorosidade e jovialidade. Trabalhar? Sim, no que gosta! Amar? Sim, sem medo, sem modelos, sem um ritmo definido. Fingir? Não, deixe tal anomalia de lado, chega ser feio a pseudo preocupação por todos os fatores do mundo. Dinheiro? Com certeza! Só dinheiro? Penso que não é o correto. Ler? Ora, qual o autor da vez? É tão fácil quanto o difícil. Confia, criatura! Certo – respondi.
                                    É notório que, no outro dia, possuía olheiras profundas. Felizes estavam as criaturinhas que, de tão roxinhas, coloriram uma feição matutina. Valeu todas as penas desprezadas por mim no passado. Se a mudança pressupõe um raciocínio lógico e imposição de argumentos eficientes, nisso, palmas, estava eu complacente com a ordem. O próximo passo era enviar uma mensagem para a prima Natália e anunciar que visitaria ela e o bebê e que, por pura gula, levaria empadinhas quentinhas. E mais! Adivinha quem fará o bolo de cenoura e calda de chocolate? Eu mesma! Vovó ficará boquiaberta. Ah, e quão estupenda gargalhará minha mãe ao ouvir na ligação repentina a notícia de que nesse fim de semana ela é a convidada especial pra uma relaxante caminhada! E claro, termino aquele livro hoje mesmo. Farei com supremacia o que tiver por fazer. Trabalharei contente. Afinal, numa crise de desemprego, estou muito bem empregada, obrigada.
                                    Por fim, a famosa confusão de tradução da frase de Shakespeare fora-me útil em sua forma abrasileirada tanto quanto quando dissera ‘to be or not to be, that is the question’. O diferencial fora, realmente, a luz que me acendera.  Um fogo ardeu ferozmente por dentro da carne, queimando de mim cada essência corroída de miséria criativa, amorosa, familiar, e sem menor pudor, revolucionária. Te ofertam, às vezes, uma única e corriqueira segunda chance. Portanto, como é que se dá a transformação vagarosa do renascimento da mente?