quarta-feira, 8 de junho de 2016

CONCISÃO

Line Drawing - Picasso 


PRÓLOGO
A vida é linear. Seu fim é um mal súbito. O início de alguém é a morte de outrem. Ser é fingir. Isto é a concisão.
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Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso.

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Maria morreu no dia 29 de dezembro de 1923. Suicidou-se. Não entenderam seus vizinhos o porquê. Tinha 34 anos. Nenhum filho. Nenhum cachorro. Nenhum gato. Nem marido. Nem mãe. Nem pai. Nem avós. Nenhum irmão. Nenhuma irmã. Não tinha amigos. Não tinha casa. Não sorria. Não amava. Não era bonita. Não se via. Não existia.
Escrevia. Bebia. Fumava.
Portanto, suicidou-se. Não entenderam seus vizinhos o porquê. Tinha 34 anos. Atirou no peito, o centro dos males, na Praça Quinze de Novembro no Rio de Janeiro.

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Decidiu em 1922. Encerraria de vez essa desordem. Levantava-se, rodava pela sala que lhe dispuseram em 1921 em troca de serviços na Hotelaria Gamboa, sentava-se, levantava-se novamente e assim, seguia sua andança pelo cubículo. Era uma saleta ao fundo do depósito de alimentos, úmido, mofado e sem ventilação. Ali decidiu que iria morrer. Se até a data marcada a vida não tomasse partido, ela mesma faria o serviço. Por admirar a Praça Quinze de Novembro, afirmou para si que ali seria ideal.

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Em 1920, jogando a vida com o destino, sofreu xeque-mate. Amava as escondidas Gilberto, o cozinheiro da Hotelaria Gamboa. Era casado o homem. Certa de que não seria adúltera, o admirava somente. Nada mais.
Porém, tornou-se o varão repentinamente tísico em último estágio, morrendo em poucos dias. Maria desejava no jogo do desdém ao menos a posse da companhia no falecimento, o mais baixo dos quereres. Nem isso teve.
Não foi ao enterro. Sentia inveja da esposa, Gilberto morrera em seus braços. 

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Este é o relato do único prazer experimentado por Maria.
Conhecera Alberto na Rua do Ouvidor. Andava tão depressa o moço, que seu lenço voara sem que ele o desse por perdido. Maria, que saía de um entroncamento, tomando o lenço ainda no ar, deduziu pela inexistência de qualquer outro senhor naquele instante, que fosse mesmo dele o encontrado. Acelerou o passo e o chamou freneticamente. Tinha pressa também. Desejava chegar à Gamboa antes que Gilberto partisse. Trocar saudações com o amado era para ela o ápice da satisfação.
Alberto subitamente tornou-se para ela, tomou-lhe o lenço, agradeceu e seguiu novamente. Não dera muitos passos para que pudesse retornar. Gritou a mulher que ia longe. Alcançou-a. Ela deu-lhe a atenção. Tomou ele sua mão e a acariciou. Mas também achegou-se nela. Ela, confusa, cedeu. Beijaram-se. Soltou-se dele depois de já ter saciado o desejo. Correu. Não se viram mais.

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Em maio de 1910, aos 21, imaculada, com a mãe doceira prestes a findar-se, caminhando num beco da Glória, foi assaltada por um pirralho negrinho. Tomou-lhe o moleque seus únicos tostões para pagar à mãe a visita de um médico. A mãe morreu na mesma noite. Desinfeliz do negrinho!

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Maria foi concebida em uma relação canalha. Revelou a mãe, Inês, em 1909, que não, o pai de Maria não havia morrido. Provavelmente estava bem vivo. Carlos era da Infantaria do Exército. Passou uma temporada no Rio com a guarnição em meados de 1888. Encantou-se com Inês e prometeu a ela que desistiria da vida militar para que pudessem fugir juntos.
Inês era só. Sem pai. Sem mãe. Recebia ajuda de boas damas que lhe deram abrigo desde que nascera. Agora, aos 15 anos, estava apaixonada e pretendia partir. Contudo, para sua inocente surpresa, a guarnição retirara-se um dia antes da data marcada rumo a São Paulo e junto fora Carlos, deixando buchuda Inês. Chocou-se Maria. O pai era um desgraçado!

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1900. Primeiro dia do ano. Sentia-se estranha. Mal quista. Mal vista. Sem jeito. Sem inteligência. Era uma pobre infeliz. Não fez nenhuma promessa. Para quê? Nada que desejasse viria realizar-se. Abraçou a mãe, abraçando a mãe à filha também. Não perderam tempo. Foram confeitar doces para vender. Questão de sobrevivência.

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Três de fevereiro de 1889 às 8:41 da manhã. A parteira Francisca mostrou luz à Maria do Carmo de Oliveira.

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“Jornal do Brasil, 29 de Dezembro de 1923, Rio de Janeiro.
Passados quinze dias desde a assinatura do Pacto de Pedras Altas, o Rio Grande do Sul vive relativa paz após onze meses de tensão política”.
Não noticiaram a morte de Maria.

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EPÍLOGO

Não se engane, leitor. Maria não morreu de solidão. Morreu de satisfação. A narração fora tão concisa até aqui que se esquecera de esclarecer os fatos.
Maria era tão feliz com tudo, apesar da miséria, da má sorte, da solitude, que certo dia, indignada consigo mesma, com tamanha frieza e insensibilidade em relação as coisas que lhe ocorreram até ali, que achou-se má. Era uma egoísta desalmada.

— Qual que nesse inferno de vida gargalha todos os dias? Sou louca, ora! — Bradou.

Diagnosticando-se erroneamente como mentecapta, encerrou-lhe a vida por incompreensão. Maria era, na verdade, conformada e não louca. Suicidou-se por concisão. Tal qual foi o espanto dos vizinhos. Besta!

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A concisão é o mal súbito da vida. Chama-se morte. 

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