domingo, 22 de maio de 2016

PROMESSA

Girl with Hair Ribbon - Roy Lichtenstein
1965

     E eu prometo por mim mesma que, a partir do dia de amanhã não serei mais eu. Não esse eu de agora, nem com essa tristeza de hoje, e sim como um novo dia que reflete aos olhos. Grande promessa a minha. Já havia dito isso grandes pensadores há muito tempo e agora eu repito. Quão sábia sou. Não por repetir, mas por decidir. Mudar. Dói? Mudar? Sim!
     É estranho sair do conforto, no entanto minha mente foi ensinada a viver ocupada, assim não pararia como uma máquina sem combustível. Mas minha alma se mexe e se bate tão ofegante e nevosa que sinto dó e extrema tristeza. Não sei descrever, mas preciso agir. Fazer acontecer e realizar.
     O que faço pra sentir esse prazer da felicidade? Ah! Se eu pensar morrerei como tantos outros que tentaram. Só quero descobrir algo para fazer e fazer, por que o que mata é não saber. E concluo: desejo o verbo em minha vida como o peixe à água e as nuvens ao céu. Que os deuses das religiões me ouçam e empurrem lá do outro plano o pó do despertar, e que assim eu surja da escuridão da mente e apareça na claridade do viver.
     E disso declaro ser verdade.


Esse conto também foi publicado anteriormente* como presente e homenagem no blog Carta Aberta, organizado pelo querido Hernandes Augusto da Silva.

*Para esta republicação, houve alterações de palavras

quinta-feira, 19 de maio de 2016

CHAOS

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA - SALVADOR DALÍ 


                                    Não sabia exatamente se preferia narrar a história em primeira ou terceira pessoa. Se em primeira, fundamentaria elementos estéticos para que eu pudesse ser enxergada como completa pelo simples fato de estar vazia. Era a questão do paradoxo. Deixou mais bonito os textos que li e que admitiam esse método. Já se em terceira pessoa, abusaria dos eufemismos que minimizariam a pena que sentiriam o público. Definitivamente, a pena me causava desgosto. Repulsivo e ignóbil. Mesquinho demais para ser auferido por alguém. Sentimento meia-tigela advento de uma ignorância lírica. Escreveria. Iria escrever. Diários andavam salvo da moda, pensar em um me fez cansar. Nada de diários. Mas eu precisava contar, contar por qualquer meio, os sufocos joviais antes que minha falha memória expurgasse o tema.
                                    Me era confuso a premissa ‘ser ou não ser, eis a questão’. Sei que de fato o texto original não tencionava tamanho cunho filosófico-romântico e, a tradução aportuguesou o belo pelo complexo, a admiração pelo difícil. Hamlet para lá, eu mesma consenti em cair nessa peça. O que formalmente, não compreendia. Fazia por emblema. Na verdade, ele quis dizer: ser ou estar, eis a questão... Assim, então, que em uma madrugada alheia me vi na necessidade de perder uma noite de sono em prol das ponderações de juízo pessoal. É que eu estava deixando de perdurar a autopoiese para ter o que me convinha. Estava e não era. Consequentemente, deixei de viver. Faleci de mim sem direito a velório ou no mínimo, um discurso de despedida. Que absurdo! O que pensaria meu pai, que lecionara por trinta e seis temporadas a doutrina do ‘encontrar o vivaz’. Seria repreendida, óbvio!
                                    Estando desabitada de ânimo e ao ser soprada ao relento sem nenhum cuidado, eu ia cultivando uma rotina encharcada de engajamentos dúbios e tristes. Quem sou? Responda menina, responda! Okay. Lá vai. Sou aquela que acorda às cinco na marra, contudo acredita na essencialidade das manhãs, no canto do galo e o raiar do sol visto da cadeira de praia, do alongamento matinal, do cobertor e leite quente aproveitados sob o muro. Essa sou eu. E quem estou? Acordo às sete. Atrasada, atordoada. Pense no salário, pense no salário. Engula tudo, não mastigue. Corra, corra! Olha o ônibus! Agora corra de verdade. Sente-se se der. Tome sol se der. Observe sempre. O conjunto vazio é maior do que eu imaginara. Uau!
                                    Eu sou quem lê dezenas de livros mensalmente, que aprende as artes cênicas mimificando as expressões relatadas pelo escritor. Transpasso a felicidade literária para a realidade inquieta de encontros amorosos. Amo meus tios. Tenho poucos. Minha mãe carece de atenção. Conversamos sobre economia, política e chow-chows. Finalizamos a receita prometida, o cappuccino no centro da cidade e a casa por faxinar. Vó Vanda caminha mais de três quilômetros numa tarde para visitar os netos e presenteá-los com bolo de cenoura coberto de calda de chocolate. Fazemos festa quando ela vem. Trocamos ilegalmente a posição dos cactos no quintal e tagarelamos sobre os senhorezinhos que circundam lá pela vizinhança dela não se esquecendo nunca de dar suas agradáveis saudações.  Quem estou? Não vejo tia Claudete passa-se de três anos. Dizem que depois que me mudei para cá, dois primos se casaram e uma já tem uma filhinha que pronuncia ‘florzinha’ antecipadamente à mamãe. O tempo voa, no final das contas. O médico recomendou menos esforços à vovó pelas questões cardíacas. Neste ano só um cacto floresceu. O clima está mudado. Afetou estes e também os desertos pelos quais ando me enfiando. Mainha está jururu. É evidente. Estaria em seu lugar.
                                    Murchei. Minha flor não quis desabrochar. Não, não e não! Não aceito isso. Nada de teorias conspiratórias, tá? Ser sem complicar. Quem foi que disse que a simplicidade não é complexa? Ela mora no município da paz e exige de você no mínimo resquícios de amorosidade e jovialidade. Trabalhar? Sim, no que gosta! Amar? Sim, sem medo, sem modelos, sem um ritmo definido. Fingir? Não, deixe tal anomalia de lado, chega ser feio a pseudo preocupação por todos os fatores do mundo. Dinheiro? Com certeza! Só dinheiro? Penso que não é o correto. Ler? Ora, qual o autor da vez? É tão fácil quanto o difícil. Confia, criatura! Certo – respondi.
                                    É notório que, no outro dia, possuía olheiras profundas. Felizes estavam as criaturinhas que, de tão roxinhas, coloriram uma feição matutina. Valeu todas as penas desprezadas por mim no passado. Se a mudança pressupõe um raciocínio lógico e imposição de argumentos eficientes, nisso, palmas, estava eu complacente com a ordem. O próximo passo era enviar uma mensagem para a prima Natália e anunciar que visitaria ela e o bebê e que, por pura gula, levaria empadinhas quentinhas. E mais! Adivinha quem fará o bolo de cenoura e calda de chocolate? Eu mesma! Vovó ficará boquiaberta. Ah, e quão estupenda gargalhará minha mãe ao ouvir na ligação repentina a notícia de que nesse fim de semana ela é a convidada especial pra uma relaxante caminhada! E claro, termino aquele livro hoje mesmo. Farei com supremacia o que tiver por fazer. Trabalharei contente. Afinal, numa crise de desemprego, estou muito bem empregada, obrigada.
                                    Por fim, a famosa confusão de tradução da frase de Shakespeare fora-me útil em sua forma abrasileirada tanto quanto quando dissera ‘to be or not to be, that is the question’. O diferencial fora, realmente, a luz que me acendera.  Um fogo ardeu ferozmente por dentro da carne, queimando de mim cada essência corroída de miséria criativa, amorosa, familiar, e sem menor pudor, revolucionária. Te ofertam, às vezes, uma única e corriqueira segunda chance. Portanto, como é que se dá a transformação vagarosa do renascimento da mente?
                                   




quarta-feira, 4 de maio de 2016

A TENTATIVA É INFINITA, MAS A ESPERANÇA MORRE



Cabeça de Mulher - Cândido Portinari 
1955


"As coisas não valem senão na interpretação delas. Uns, pois, criam coisas para que os outros, transmudando-as em significação, as tornem vidas. Narrar é criar, pois viver é apenas ser vivido".
Fernando Pessoa 

 Caminhava com os pés descalços pela calçada morta de um bairro periférico. Amarrava em mim as dores nostálgicas das tragédias diárias, ouvia gritos permanentes de uma mente perturbada e ia atirando insensatamente os medos pelos ares da madrugada. Eu, passo a passo, me permitia viajar, rodopiar e me posicionar em holograma numa saleta antiga e inadequada de se estar. Sentando-se nos tapetes sem a permissão do dono, me deslocava imensuravelmente entre a rua deserta e a antevisão da câmara mal quista. Era um verdadeiro ir e vir, do cômodo ao caminho, da presença daquele ser estranho à noite frígida. Tal fato me soava uma analogia da triste situação de partir e tornar de um romance vivido. Se vai, então a maré o traz de volta, se me agride, então eu o perdoo dos vícios e ele retorna... Não sabia viver pacificamente.
Andejava como um mendigo na iminência de despojar minhas próprias vestes ao chão para que se pudessem clamar as esmolas. Não o fiz por conveniência!  Gana não me é pouca, já que desta vida nada além me conquista, tampouco posso dessa causa me salvar. Mesmo se decidisse efetivar o esquema, indubitavelmente eu possuía a razão pura de que num processo inverso, o senhor daquela alfombra na qual descansei, visitaria a mim e me enrolaria em seus longos braços. Embora em um grito estancado, eu acreditava que aquele outro me buscaria e reafirmaria a mentira que somos, estando eu já camuflada sob cuidados.
Minha pele foi sensorialmente se esticando até que enfim, aliviando-me do erro, curando-me do desalento, matando meu desespero, se rasgou em pedaços vociferados de sangue e histórias. Cada mini parcela de mim não se podia juntar, porque ninguém pretendia a mim servir, de forma que eu mesma já não apetitava existir. Os reflexos dos meus fragmentos me roubavam o trono que antes nunca se facultou desapossar.  Evidenciada ao mundo, tremia de frio e vergonha, caindo da consciência os escrúpulos da honra. Por ter ateado fogo nas fotos, por ter arriscado os dons alheios, por desejar que a ordem dos fatos tivesse sido inversamente infeliz, por bradar e fuçar demasiadamente tua vil fantasia, consegui de imediato me arruinar. Preciso mais uma vez me desculpar.
Se estou aniquilada, fracassada, em ruínas e derrotada, se assim estou, é por conta da soberbia, da imodéstia. Se estou abatida, afugentada, exausta e exaurida, é que menti descaradamente. Se a ilusão da sala um dia puder se converter em realidade, implorarei seu retorno, que já estou vencida de desgraças. Lamentaria e choraria colossalmente para que se fechasse a porta de casa, para vivermos desertos de ninguém, para sempre, ignorando eu teu novo amante. Restituiria o início, o reinventaria e prazerosamente o guiaria.
O que tenho é uma avenida. O que tenho é uma alameda. Você se tem. Eu não o tenho. Única, eu me debruço em necessidade. Me arraste pelo braço, me pegue na mão, me bata por mérito, e eu concordarei.
Agora a chuva cai. Faz parte do castigo. Lava a minha alma pesada, suja e áspera. Lava meus cabelos que carregam seus toques. Lava meu cenho forte de quem vem chorando há dias. Lava minha sombra persistente meio a noitada e a alvorada. Lava minha aparência tranqueira. Lava minha presença. Lava minha essência. Lava minha existência. O dilúvio me exclui da nau. Há o que passa soltando berros de lobos. Que acham que eu sou? Se não sabem, aí está. Sou delinquente, cangaceira, desterrada. Se ainda não compreendeu, eu sou salafrária.  
Imagino, de repente, o que vai sucedendo aí nesse quarto livre de mim, desabitado dos meus objetos. Você preferiu não se justificar, muito menos insistir. Se há alguma coisa que em mim lhe resta acreditar, venha me buscar. Durmo aqui, na travessa D, choramingando com os gatos, me preenchendo de vazio, rogando à lua que ilumine somente essa vigília. Ando desprotegida. Estremecida.
No entanto, uma amarra desamarra o sofrimento do peito, exaurindo uma logicidade útil neste momento. Mas, e se na verdade, fora eu mesma quem matara esse apreço por um boçal e rude deleite? Que vou eu fazendo? É decerto que uma coisa somente se fissura, se de uma das partes há um peso maior do que o outro sentimento, escondido ora numa clara ora numa escura percepção. Ou seja, obrigatoriamente o fracasso já está destinado aos romances, isto porque é de se nascer sem se reparar que há no outro o querer inverso. Sim, todo caso já se encerra antes mesmo de se inaugurar.                                                                                    Pois bem. Sou ave de rapina. Rasgo o coração, murcho a imprecisão. Siga então só. Eu continuarei falecendo com esse talento de escrever das coisas que se passam por detrás das cortinas detentas dos contratos amorosos. É tarde... Estou cega... E quer saber? Eu desisto.





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