quarta-feira, 4 de maio de 2016

A TENTATIVA É INFINITA, MAS A ESPERANÇA MORRE



Cabeça de Mulher - Cândido Portinari 
1955


"As coisas não valem senão na interpretação delas. Uns, pois, criam coisas para que os outros, transmudando-as em significação, as tornem vidas. Narrar é criar, pois viver é apenas ser vivido".
Fernando Pessoa 

 Caminhava com os pés descalços pela calçada morta de um bairro periférico. Amarrava em mim as dores nostálgicas das tragédias diárias, ouvia gritos permanentes de uma mente perturbada e ia atirando insensatamente os medos pelos ares da madrugada. Eu, passo a passo, me permitia viajar, rodopiar e me posicionar em holograma numa saleta antiga e inadequada de se estar. Sentando-se nos tapetes sem a permissão do dono, me deslocava imensuravelmente entre a rua deserta e a antevisão da câmara mal quista. Era um verdadeiro ir e vir, do cômodo ao caminho, da presença daquele ser estranho à noite frígida. Tal fato me soava uma analogia da triste situação de partir e tornar de um romance vivido. Se vai, então a maré o traz de volta, se me agride, então eu o perdoo dos vícios e ele retorna... Não sabia viver pacificamente.
Andejava como um mendigo na iminência de despojar minhas próprias vestes ao chão para que se pudessem clamar as esmolas. Não o fiz por conveniência!  Gana não me é pouca, já que desta vida nada além me conquista, tampouco posso dessa causa me salvar. Mesmo se decidisse efetivar o esquema, indubitavelmente eu possuía a razão pura de que num processo inverso, o senhor daquela alfombra na qual descansei, visitaria a mim e me enrolaria em seus longos braços. Embora em um grito estancado, eu acreditava que aquele outro me buscaria e reafirmaria a mentira que somos, estando eu já camuflada sob cuidados.
Minha pele foi sensorialmente se esticando até que enfim, aliviando-me do erro, curando-me do desalento, matando meu desespero, se rasgou em pedaços vociferados de sangue e histórias. Cada mini parcela de mim não se podia juntar, porque ninguém pretendia a mim servir, de forma que eu mesma já não apetitava existir. Os reflexos dos meus fragmentos me roubavam o trono que antes nunca se facultou desapossar.  Evidenciada ao mundo, tremia de frio e vergonha, caindo da consciência os escrúpulos da honra. Por ter ateado fogo nas fotos, por ter arriscado os dons alheios, por desejar que a ordem dos fatos tivesse sido inversamente infeliz, por bradar e fuçar demasiadamente tua vil fantasia, consegui de imediato me arruinar. Preciso mais uma vez me desculpar.
Se estou aniquilada, fracassada, em ruínas e derrotada, se assim estou, é por conta da soberbia, da imodéstia. Se estou abatida, afugentada, exausta e exaurida, é que menti descaradamente. Se a ilusão da sala um dia puder se converter em realidade, implorarei seu retorno, que já estou vencida de desgraças. Lamentaria e choraria colossalmente para que se fechasse a porta de casa, para vivermos desertos de ninguém, para sempre, ignorando eu teu novo amante. Restituiria o início, o reinventaria e prazerosamente o guiaria.
O que tenho é uma avenida. O que tenho é uma alameda. Você se tem. Eu não o tenho. Única, eu me debruço em necessidade. Me arraste pelo braço, me pegue na mão, me bata por mérito, e eu concordarei.
Agora a chuva cai. Faz parte do castigo. Lava a minha alma pesada, suja e áspera. Lava meus cabelos que carregam seus toques. Lava meu cenho forte de quem vem chorando há dias. Lava minha sombra persistente meio a noitada e a alvorada. Lava minha aparência tranqueira. Lava minha presença. Lava minha essência. Lava minha existência. O dilúvio me exclui da nau. Há o que passa soltando berros de lobos. Que acham que eu sou? Se não sabem, aí está. Sou delinquente, cangaceira, desterrada. Se ainda não compreendeu, eu sou salafrária.  
Imagino, de repente, o que vai sucedendo aí nesse quarto livre de mim, desabitado dos meus objetos. Você preferiu não se justificar, muito menos insistir. Se há alguma coisa que em mim lhe resta acreditar, venha me buscar. Durmo aqui, na travessa D, choramingando com os gatos, me preenchendo de vazio, rogando à lua que ilumine somente essa vigília. Ando desprotegida. Estremecida.
No entanto, uma amarra desamarra o sofrimento do peito, exaurindo uma logicidade útil neste momento. Mas, e se na verdade, fora eu mesma quem matara esse apreço por um boçal e rude deleite? Que vou eu fazendo? É decerto que uma coisa somente se fissura, se de uma das partes há um peso maior do que o outro sentimento, escondido ora numa clara ora numa escura percepção. Ou seja, obrigatoriamente o fracasso já está destinado aos romances, isto porque é de se nascer sem se reparar que há no outro o querer inverso. Sim, todo caso já se encerra antes mesmo de se inaugurar.                                                                                    Pois bem. Sou ave de rapina. Rasgo o coração, murcho a imprecisão. Siga então só. Eu continuarei falecendo com esse talento de escrever das coisas que se passam por detrás das cortinas detentas dos contratos amorosos. É tarde... Estou cega... E quer saber? Eu desisto.





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2 comentários:

  1. Parafraseando Ricardo Lewandowski, digo que seu texto é figadal.

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  2. Como prometido, minha visita tardia...Escreves muito bem, menina. Há muito lirismo em sua escrita. Forte e comovente. Abraços!

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