terça-feira, 26 de janeiro de 2016

BAGUNÇA PESSOAL




Agora chegou a vez, vou cantar

Mulher brasileira em primeiro lugar
Benito Di Paula

“Cada um com sua bagunça pessoal”, pensei. Tão mais fácil descer a ladeira, uma rodovia de pedras com a vista pro mar. Enquanto isso, crianças brincam a par de tudo. “No final da tarde, organizarei as papeladas”, concluí as ideias. Contudo, minha lógica estava nos preços. O preço disso é aquilo, quem faz aqui colhe ali. Ok. O grande dia vem.
“Passo a frente, sempre em frente”, foi o que disse quando percebido que algo me seguia. Tão sombrio. Estava pagando os pecados? Era um reflexo de quem anda em círculos rumo a um caminho interno. Cada passo só me levava a um degrau mais profundo de mim mesma. A essência já parecia muito inútil e o que eu mais precisava era levar as tais compras até a casa da dona que eu trabalhava. Um trato, é um trato. Por um salário eu fazia o papel de mulher, mãe e foz. E a minha biografia se ia indo num dos bairros pobres da tão mísera cidade. Mas levando as verduras de terça-feira, ótimo.
“Alguém te espera, se aceite”, começava a remoer. Eu me prendia como se fosse uma bandida e esquecia daqueles que apostavam suas vidas em mim. Eu não podia deixar que a sombra me perseguisse onde eu fosse. Às 6 muitas bocas esperavam ser alimentadas. A dona pretendia fazer uma salada pro jantar e, o dono uma saída a negócios. Os meus gostariam de ver um filme com pipoca e tomar suco pronto de morango. Coisa de criança.
“Faz uma pausa, alguns minutinhos não te atrasará em nada”, olha que tinha até uns pensamentos maldosos! O proletário não tem pausa, seja água ou vinho, massa ou legume. O proletariado vai lá e não reclama de nada não. Ou faz ou fica sem pão. Que descanso, que nada. Acelerei o passo, isso sim! Desci o morro e arrisquei o medo num cordão. Cordão de Deus, que tocava e orava em perdão.
“Vamos mexer, dançar um pouco”. É que num desses bares pequenos à frente, tocava The La’s. Não, não era um mero boteco. Era algo do estilo old e vintage, diziam. Em uma das letras, o meu retrato: ela lá vai indo, e vai indo novamente. Na outra, poetizavam que a melodia sempre nos encontra. Não discordava. “Se olhar na sua mente, você sabe o que você vai encontrar. Abra-a”. Era o que soava no crepúsculo de todos os dias. E eu aprendi a repassar. Com o tempo fui camaleão. Nos habitats da terra, dos sentimentos escondidos. E então por que não se agitar com essas notas ingleses dos anos 90? Porque eu simplesmente tinha mais coisas a serem feitas.
“E agora, para onde é que eu vou?”. Só para mim e minha consciência pesada, eu mantinha a fuga que rondava pelos planos diários. E como eu imploro perdão. Pensei em desistir de tudo para, quem sabe, ser feliz em outro lugar. Mas não, eu juro. Brotou em minh’alma um amor que eu reguei a muito carinho e proteção por toda minha labuta. Cada gota de suor me valia de inteiro quando observada cada sorriso se abrindo por um mero filme e um suco pronto.
“Pés no chão é o prazer do refrescar”. Já em casa, me apossei da caixa de fotografias que escondia em cima do guarda-roupas. Havia duas opções: ou me livrava do passado, ou aceitava e o fazia de escudo. A primeira foto era dos meus 15 anos. Uma cidade de 800 habitantes. Retrato de uma garota de traços indígenas sentada numa varanda de madeira. Casa alta, frente à leste. Uma visão singular. Imagem dos 18, o casamento. Outra aos 23. Uma criança de dois anos e mais uma de nove meses. O amor escolhido me envolvia com as mãos. Que proteção, céus! Que proteção! Já aos 29, eu só. A casualidade levara embora o futuro a dois. Levara sem aviso prévio, consideração ou um pouco de compaixão.
“Chega”, eu grito comigo mesma. Eu dou sinal de comando e me faço capitã. Se lamentar não me levará nem a meia milha do conforto. A paz sonhada vem da alma e de quem a soprou. Vá bela flor, se vá. Sou de fortes origens, darei honra a quem me fez. Vá!
E vou. Uma fita me serve bem. Uma a uma, recordação a recordação, tacada à parede, arrastada até a altura desejada e forçada a ser o que eu bem entendo. Um círculo de passados. Todos amarrados aos tijolos.
Na manhã seguinte, cedo, bem cedo, confiro a arte que eu, sapeca, havia aprontado. Voo em devaneios e aplico a lição. É a quantia paga por ter acreditado no que não devia. O preço por ter guiado pelo rumo errado o que já era planejado. A falha e a culpa num conjunto de putrefato. Retratos da juventude pregados à mão nas velhas paredes do quarto. O que era para ser concluído, se fez. Já não dava mais para seguir trilha adentro de mata selvagem. 
“Alô, alô, marciano”. Lá vou eu descendo a ladeira, uma rodovia de pedras com a vista pro mar. Enquanto isso, crianças brincam a par de tudo. “No final da tarde, serei feliz”, almejei. Qualquer outra coisa é mera solidão. 






sábado, 16 de janeiro de 2016

A FAZENDOLA




Together, to be
Together and be

            Às duas da manhã, uma casa em silêncio. O único burbúrio são as engrenagens dos meus pensamentos. O sono fugira de mim como a caça do predador. Hoje tudo bem. As maravilhas da noite estão sussurrando demais para que eu vá fazê-la de companhia. Nenhum sonho substituiria a perspectiva do céu daquele domingo de fim de ano. As estrelas acham-se em luzir clarão de remanso. E eu tímida, desastrosamente vou ao seu encontro.
            Orgulhei-me de saber que de vida, ali estava repleto. Quando cuidadosamente abri a porta e logo a frente admirei o campo de trigo, agradeci pelos dias que somos tomados de bons sentimentos. O trigal acompanhava o vento, todavia o vento desorganizado, inquieto demais, bagunçava as folhas simplórias. Os animais descansavam, porém eu sabia de suas existências.
Nunca arrependi-me de despedir da cidade e partir pra minha fazendola. Sim, desse jeitinho a chamava. Ali estava meu coração, e onde este está, ali está o lar. E amorosamente eu cuidava do meu. De lá, eu colhia exemplos inspiradores e ensinamentos proveitosos. Até aprendi com esta mudança, que não devemos vender nossos planos e dores a qualquer um, mas tenhamos a esperteza de saber vigiar.
Com isso, já sentada frente as árvores que circundavam a lavoura, passei a refletir. Tão próximo de um novo tempo se iniciar, lembrei das tantas experiências do ano e das tantas vidas que por mim esbarraram. De longe avistei as cores se entrelaçando e recordei-me que quando criança, sempre acreditei que o mundo fosse desenhado e pintado por pontas de giz de cera. As aquarelas ficavam mais afiadas e pontiagudas quando feitas dessa maneira. Ser era isto. Enxergar o que não se pode, ir além sem ser chamada. Esses sonhos que sobram no canto da casa e a mente mais viva do que nunca. A mocidade vai-se embora com o trem de forte assovio. Eu embarquei.
Engraçado! A insônia tornara-se minha presença fiel e diária. A forma e a força dos acontecimentos vinham me confundindo e iludindo. Essa bagagem eu trouxe acrescida na hora do partir. E sem escolha, à essa maneira, vinham me ocorrendo a vida. Um jazz Nova-Iorquino enquanto o sol ainda está vivo e nos desgastando. À noite, o sax calava-se, mas o piano com notas mansas me trazia os clássicos europeus. Que onomatopeia de ideias! Eu me coloquei numa meta-situação, onde quem olha é quem narra e quem vive é quem sofre, sendo o mesmo. O problema é que isso é só a mais nítida verdade.
O fato é também que um furacão revirou meus sentimentos, meu cotidiano – o tudo. E cá estou analisando mais um ano que passou. Vá! Adianta que eu prometa isto e aquilo para algum aquém-mar e na veracidade, há um desfecho a dar a si mesmo? Se mantenha em pé primeiro – foi o que eu disse da passagem passada para esta. Não sei afirmar se amei mais ou se odiei menos. Se fui, se fiquei. Se diminuí para Ele crescer ou se mais tive com o orgulho. Não sei. Entretanto, confesso. Respirei fundo e inspirei liberdade. Tumultuei e gritei. Mas disso, ah! Era a tal moçoila que subiu no trem. E quem disse que não saber não é aprender?
 Por um instante notei que os pássaros já estavam dispostos. Gargalhei comigo mesma imaginando-os na janela com saltos e pios numa tentativa de alarmar-me. Porém nem chegarão. Primeiro: isto não é um conto de fadas. Segundo: eu que já estou com eles. Fui eu que os despertei! Eles são rios correntes e eu, um lago de turbulências em círculos. Sou o próprio redemoinho. Mesmo assim, eu jurarei se tornar algo bom e puro para o mundo. Não é deste modo que fazemos? Os tais costumes! No entanto os pássaros, os pássaros são felizes. Ele pulam, cantam e dançam. Eles voam! Isso basta.
E as crianças? Já pensaram nas crianças? Porque eu já podia ter certeza de que minha alma era senhora e caducava das maneiras. E elas? Verão tantas mortes, descontroles. Uma águia negra e uma do povo. As armas do Estado as matarão todas. Tudo. Todos. O que ensinarão a elas? E o que dirão no final? A vida é como é? Pois, no fundo você saberá que não. Perdoe-me. Traria todas para cá. Banhar-se-iam no córrego e subiriam nas mangueiras. Comeriam goiaba do pé e sujar-se-iam da terra vermelha. Ririam sem medo. Ou quem sabe, meramente respirariam.
O trigo me reflete a lição do joio. E a lição remete-me ao final. Do meu. Do seu. Do quando acabar e como acabar. Sou apenas a juventude e a beleza. Quem sabe é cedo demais para isto. Por agora, ainda tenho de vislumbrar o amor, a paz e o povo. E que tudo seja dado a este último. Que o penúltimo esteja contigo e comigo, mas que o primeiro carreguemos em si e por ti. E igualmente para o sempre...
Talvez o frio e a profundidade das mentalizações tenham me cansado. Na realidade, eu só preciso retornar para o quente e o conforto de tudo que fiz e construí. Exatamente na hora certa. Se prosseguisse, me distanciaria das mentiras que se tornam verdades e que sem elas vamos à loucura. Certas coisas ficam mais esbeltas guardadas. Desembrulhar em algumas chances é somente despedaçar o que ali está escondido. Só não mexa. Por anos a fio ainda reluzirá e nenhuma decepção há de existir. É de difícil aceitação, mas da sétima arte do mundo, puramente nos sobram as lágrimas de finais de peça. As cenas, contudo, elas simplesmente não ficam.
Arregaço as mangas, porque muito tenho motivo de fazer do infinito um desafio. Estralo os dedos, como numa preparação para o fight final.  Num giro do corpo observo tudo. Calmamente. Delicadamente. Do A ao Z, do pequeno ao feroz. E concluo: que bela a minha fazendola! Traço o caminho reverso e tranco a porta de entrada com duas voltas na chave. Daqui para frente, nada será regido por metas, mas por mim. Quem sabe quando e como virar as madrugadas sou eu. Há quem ouse mexer na fechadura do meu lar e...
Lá se fora um terço de noite.








domingo, 10 de janeiro de 2016

LEGADO




O homem se perdeu, cego já não vê(..)
A ilusão de estar completo lentamente o desfaz
Tudo em busca de algo tolo que seu ego satisfaz
Tanto quero, tanto busco mas quando acabar
O que deixo?

SCALENE 
Quem diria que aquele senhor um dia fora alguém tão utopista quanto eu. O rosto com tantas rugas não escondia um passado difícil e controverso, porém naquela alma idosa habitava um aventureiro nato e corajoso. Confesso que admirei quando o vi apreciando músicas de grande valor, de belas letras e ritmos fluentes. Deve ser preconceito nosso de células jovens para com aqueles que já perderam tantas, posto que são estes nossos livros culturais e didáticos, nossos professores da vida e da labuta.  De qualquer maneira, fora este homem de mais idade que muito me admirou e surpreendeu.
               O conheci numa viagem curta, no entanto valorosa e um tanto cansativa. São Miguel do Guaporé não é uma cidade de atrativos comerciais, contudo possui uma beleza imensa quanto à natureza e ao próprio ambiente onde residem seus moradores. Além disso, passei as horas de estadia num pequeno hotel, pois o objetivo da ida era um negócio de minha genetriz e não algum programa meu. Confesso, nada tão agradável aos meus desejos.
               No fim, concluído o que se tinha de concluir, partimos. Nossa primeira e única parada no trajeto até minha casa foi à uma loja de artesanato cujo todos os objetos eram feitos de madeira pelo próprio vendedor. Ele não era um mero vendedor, mas sim um morador do paraíso artificial que fizera da sua venda. Enfim, algo que me interessava! Sempre achei genial a ideia de transformar o bruto em algo tão delicado e de pura beleza.
Assim que estacionamos, deparamo-nos com animais, balanços e tantas outras obras vindas de alguns restos de matéria-prima depositados no fundo do barracão onde guardava também seus exemplares maiores. Perguntava-me como poderia algumas pessoas ter tal sensibilidade para contornar formas, transformar sentimentos em detalhes e acima de tudo, distribuir paciência em tantas peças para que no fim, todas tivessem tamanha formosura.  Lembrei-me de uma amiga que sempre se dedicou a aprender novas técnicas e maneiras de pintar, desenhar e metamorfosear despejos em mimos. Recordei-me também, que tentei criar algum elemento de arte, mas sempre falhara. Não enfureci, sabia que o meu dom escondia-se no encanto das palavras e do amor.
               O proprietário que aparentava ter quase 70, e que pelo visto era totalmente angustiado, recebeu-nos com um “Faço-lhes bem vindas e fiquem à vontade”. Rodamos por todo o galpão e a cada novo segundo decorrido, eu e minha mãe nos olhávamos e soltávamos exclamações de alegria, prazer e satisfação ligadas à surpresa de tantas coisas encantáveis. Decidimos levar alguns objetos de decoração e uma tábua de cortar no contorno de peixe.
               No fim das compras, o homem travou uma longa conversa conosco onde revelou sua longa história de audácia. Talvez tenha visto em nossas faces a imagem de confiança e caridade e por isso decidiu desatar um desabafo. Começou contando um pouco sobre sua realidade e depois num contexto incerto, não nos deixou perceber o porquê de sua rotina.
               Quando rapaz foi um grande viajor solitário. Era do tipo esperto e vivia dos empregos de pequena duração. Passou por Santos, Salvador, Belém, Curitiba, Cuiabá e Buenos Aires. Nesses percursos tirou muitas fotos. Colecionou armas. Partiu corações. Mas desde sempre, aprendera a produzir e nunca o deixou de fazer. Guardava um segredo que era a chave de todas suas peripécias. Lembrava-me o garoto cantado nas músicas dos Engenheiros, mas que não teve um fim na guerra. Aliás, não lutou em uma, mas havia passado por batalhas individuais.
               Possuía uma paixão por aviões e também os colecionava em miniaturas. Gostava de cozinhar as delicias regionais numa cozinha feita por ele mesmo. Na verdade, toda sua casa fora construída por si de uma maneira isolada. Nas divisões dos cômodos, havia dois quartos de visita, mas nunca foram usados. Seus únicos hóspedes eram na realidade, os clientes e observadores do talento.
               Era de fato simples perceber seu jeito jovem: carro personalizado, o enlevo por viagens e o estilo disperso. Nada negava. Contudo, foi com extremo pesar que respondesse a nossa pergunta sobre família:
 - Meus filhos são ricos e adultos. Moram em Sinop, mas nunca se apresentaram aqui. Não conhecem meu trabalho, não conhecem minha linda casa e muito menos todas as coisas que fiz inspirado neles. Chamam-me de velho louco e abandonado e prometeram a si mesmos que não viriam. Os quartos de visita são para uma vinda surpresa e cada cama que personalizei foi pensando nitidamente em suas características.
               Sua fala foi tão pesarosa e medonha que me restringi ao perguntar sobre a mãe dos filhos ou alguém que pudera ter sido sua esposa. Logo em seguida, mudou de assunto como uma fuga do que o machuca tanto ao ponto de abrir mais a ferida de um coração restrito. Ele tentava livrar-se da dor, mas confortava-se numa existência cheia de barreiras.
               Fui convencida! Ele era uma criança envelhecida, com tudo que se mostrara, ele era! É uma caixa a ser aberta e uma cena a ser estudada. E agora tudo estava certo. Minha alma e coração estavam ali e não queriam partir. Mas já era hora.
Antes de continuarmos nossa viagem, nos deu duas pedras bonitas e com cores fortes, que segundo ele, as conquistara ao longo de tantas experiências. As quais, nada nos fora revelado. Determinei que fosse a minha pedra da sorte, transmitia essa ideia. E posteriormente, cumpriu-se a previsão.
               Fiquei extremamente comovida com tudo que vi e ouvi, mas não deixei de perguntar-me sobre a divícia que havia ele construído para si em sua existência, e também por que alguém de tão bom gosto ali sozinho se fixava. Isto porquê eu muito tinha ouvido: o vazio é desespero. A herança ao próximo é o coração do pai. E “o de bem deixa uma herança aos filhos de seus filhos, mas a riqueza do pecador é depositada para o justo.” Afinal, qual o legado deste homem?

                          


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

SE REVELAR A ALGUÉM




Dmitri Spiros:
Pintor russo em sua série sobre cidades 

Você do outro lado da rua! Sim, você que me olha desse modo. Que é que você está pensando? O que você enxerga em mim? Nenhum espelho caseiro reflete a realidade para quem o olha internamente. Por acaso alguém vê o mal que faz ao próximo por se aproximar de uma vidraça de loja? Quem verdadeiramente somos é percebido pelo vizinho e pela visita do outro lado do portão, mas não por nossas mentes expertas e trapaceiras. Você aí que descobre o teu olhar com o meu, que não sabe o que faço, que não sabe de onde venho e para onde vou... o que se admira em mim? O que julgas pelo que vê? Quem sois para ti?
               Se pudesse convidar-te para sentar comigo e lá você fosse o fazer, eu te contaria meus anseios e desejos. Mas não posso. Eu realmente desejei arrematar todas as almas frustradas que em mim esbarra e à elas dar da água da vida para que se confortem. Mas não posso.  Eu realmente não posso. Por vezes, nem as vejo. Por outras, não tenho a permissão. E bem aprendi, caro senhor no qual agora me vislumbra, que meu abraço por mais forte e grande não arremata o mundo. Então, por ali e por acolá, eu vou cultivando uma horta de bem fazeres. Quem sabe assim, o próprio mundo sinta-se abraçado.
               Não sei o que assiste na estação que sou, mas sei declamar-te o quão difícil andam meus dias. Se eu tomasse alguns minutos de ti, homem do outro lado da calçada, então eu poderia revelar minhas ânsias. Começaria dizendo do inconformismo que és forte e denso. Eu não me acomodo comigo mesma. Meus conceitos, meu medos, meus desejos e minhas felicidades. Nunca direi que estarei satisfeita. Refarei dia-a-dia tudo que sou e tudo que vivo a fim de que, humildemente, me engrandeça. Não passará nem findará hora sem que meu coração não vibre em gratidão. Eu me arrisco e confio e disso não me arrependo. Por isso, pelo que sou, não me aceito não, até que eu alcance meu ápice de paz.
               Prosseguiria desembaraçando meus conflituosos pensamentos nos teus ombros caridosos. Explicaria que muito me envergonho da promessa que um dia fiz. Afirmei fielmente que sem ansiosidade viveria, porquanto bem sei que não há motivos para se preocupar com o amanhã. Mesmo assim, por muitas vezes, eu chorei, me derramei e desabei em inquietação. Deixei o desassossego e o temor tomar de conta e alí, calada e sozinha, eu sinceramente lacrimejei. Proferi que minha convicção e fé inamovíveis seriam, mas já houve de se abalar. Como eu me envergonho, senhor ouvidor!
               Confessaria que dinheiro minh’alma jamais almejou. Nenhum tostão sequer que não me trouxesse paz e felicidade. Porque vintém algum compensaria um cálice de amizade, um afago quente e tranquilizador. O que se passa em cada vida, ninguém explica. No entanto, miúda que sou, por vezes e horas, desejei um abraço de irmão. E amado, neste momento, nem todo o ouro do mundo me trouxe a calmaria do sossego.
               Esclarecerei meu espírito a este que me doa atenção. Relatarei que supliquei para que aquietassem minhas chamas ardentes de cólera, e nesta data, ninguém ouviu. Mas Ele estava lá e não me desamparou. E seguramente por isso eu não desisti. Por isso, ainda estou aqui, parada frente um oceano de carros e motos e gente... E ninguém sabe andar devagar, ninguém se fala e nem se explica. Provavelmente eu mesma não entenderei por completo o porquê das trevas que até hoje não se entendeu com a luz, porém eu direi elegantemente que as amei. 
               Por fim, já entendida que do precioso tempo de outrem eu me ocupei, eu terei de questionar: mas e a ti? O que se passa ao seu redor? Por quantas você desagasalhado buscou um lugar no abrigo das carências? O quanto você indaga por alcançar uma resposta clara pessoal? Por que será que me encontrou? E depois de escutar tudo que tens a dizer, eu anunciarei: Mas, buscai primeiro o seu juízo. Pois já não basta a cada dia o seu mal? 




sábado, 2 de janeiro de 2016

RESTO DE TOCO, POUCO SOZINHO





É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto do toco, é um pouco sozinho
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Tom Jobim


Pensei muito em começar esta escrita com alguma palavra de efeito. Talvez desse certo. Ou não. Mas já são tantas expectativas diariamente. Todas as manhãs nos prometemos algo de difícil realização. Tantas metas. Listas feitas em papeis de rascunho que acabam sendo guardados no bolso. O que seria da vida sem as ambições? A psicologia nos explica que muito enganador é o cérebro. O sabichão. No outro dia, ocultamos tudo que passou e avançamos na peça em que nos colocaram de atores. Para cada vida, um drama: que tem início, meio e por vezes, não chega ter um bom fim. Final feliz? Isso é coisa de conto de fadas.
É pau, é pedra, é o fim do caminho.
A lenha são dos galhos da árvore cansada. O tempo corre tão depressa, que quem aproveita de sua sombra, a esquece de regar. A coitada em desespero grita os sinais de que está adoecendo. Mas o ponteiro do relógio é veloz demais. Rouba das pessoas o senso de normalidade. São distraídos, iludidos e tristonhos. Enquanto isso, ela vai empobrecendo, envelhecendo e continuamente, morrendo. É uma pena que deixemos nossos jardins falecer.
As pedras são destroços de rochas infinitamente maiores. Elas vieram rolando morro abaixo nos perturbando com o barulho. Qual a escusa para que nossos ouvidos tapados não atentassem ao desmoronamento? Elas chacoalhavam nossas estruturas! Os pedregulhos menores viam fazendo tumulto na alma durante toda a estação, contudo costuramos cortinas de grossa manta para que distante de nós se mantivesse os presságios. O toque de recolher, as buzinas... Não é suficiente para que façamos a mala e partamos embora? No entanto, pedregulhos não são bolsas de caridade e, um dia se cansam e tombam junto ao grande rochedo do qual se desabotoou. O arrependimento pousa instantaneamente e nos abraça para que encolhidos choremos mais. Tão mais fácil seria se construíssemos nosso forte em terra firme, resistente aos desabamentos!
E então, evidentemente claro, pensamos ser o fim do caminho. E acredite. Não é! Fins de caminho geralmente são repletos de muros, barreiras e matas escuras. E estes são arduamente quebrados e adentrados pelos aventureiros colonizadores. Saem de casa sem ao menos saber o que encontrar. E quando encontram, precisam saber lidar. Daí, juntos e sempre juntos, planejam, oram, constroem táticas, inventam... E batem, quebram, fragmentam, cortam e alteram. De repente, outra paisagem. Se antes mata bruta, tapume forte, agora campo aberto. Ir e destampar. Quem são os audaciosos criadores de trilhas nas nossas vidas? Se alguém não tomar iniciativa, o grupo se desfaz.
Não há outro meio. O adequado é entrarmos no bando dos reconstrutores. Recolher aqueles cascalhos que se empoçou e agora nos cercam, e uni-los em edificação. Somos os engenheiros de si.  Arquitetos do que mostraremos de fruto aos homens e a Deus. Minha morada não será na areia, que quando a água molha, encharca e desmancha, destruindo as fundações do espírito.  Minha morada será edificada na rocha, aquela mesma que toda se desabou e não mais falhará. Mesmo que a porta para a sabedoria seja estreita, eu passarei e verei do outro lado luz. Muita luz. Erguerei a fronte contra o sol e exclamarei: Eu venci!
Porque todo recomeço é necessário. Porque todo recomeço é tortura. Ele nos prende em jaulas apertadas e apontam, julgam, como se já não bastasse nossas consciências machucadas que pesa segundo a segundo, minuto a minuto, nos enlouquecendo, nos batendo. Quem está preso surra a caneca com as grades e lá dos céus surge a salvação:
- Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á.
E então recordamo-nos. É ainda o papel que foi guardado no bolso. Sonhos anotados em rascunhos são aqueles que em maior embrulho chegam. E quando chegarem, teremos assimilado que o terremoto passou. As ondas se acalmaram. O céu se abriu. O dia chegou. E o sossego também. Quão belo é a paz dos justos! Quão bom apreciar a voz que diz:
-Acalma-te coração! Estas são somente as águas de março...