LEGADO
O homem se perdeu, cego já não vê(..) A ilusão de estar completo lentamente o desfaz Tudo em busca de algo tolo que seu ego satisfaz Tanto quero, tanto busco mas quando acabar O que deixo? SCALENE |
Quem diria que
aquele senhor um dia fora alguém tão utopista quanto eu. O rosto com tantas
rugas não escondia um passado difícil e controverso, porém naquela alma idosa habitava
um aventureiro nato e corajoso. Confesso que admirei quando o vi apreciando
músicas de grande valor, de belas letras e ritmos fluentes. Deve ser
preconceito nosso de células jovens para com aqueles que já perderam tantas,
posto que são estes nossos livros culturais e didáticos, nossos professores da
vida e da labuta. De qualquer maneira, fora
este homem de mais idade que muito me admirou e surpreendeu.
O
conheci numa viagem curta, no entanto valorosa e um tanto cansativa. São Miguel
do Guaporé não é uma cidade de atrativos comerciais, contudo possui uma beleza
imensa quanto à natureza e ao próprio ambiente onde residem seus moradores.
Além disso, passei as horas de estadia num pequeno hotel, pois o objetivo da ida
era um negócio de minha genetriz e não algum programa meu. Confesso, nada tão
agradável aos meus desejos.
No
fim, concluído o que se tinha de concluir, partimos. Nossa primeira e única
parada no trajeto até minha casa foi à uma loja de artesanato cujo todos os
objetos eram feitos de madeira pelo próprio vendedor. Ele não era um mero vendedor,
mas sim um morador do paraíso artificial que fizera da sua venda. Enfim, algo
que me interessava! Sempre achei genial a ideia de transformar o bruto em algo
tão delicado e de pura beleza.
Assim que
estacionamos, deparamo-nos com animais, balanços e tantas outras obras vindas
de alguns restos de matéria-prima depositados no fundo do barracão onde
guardava também seus exemplares maiores. Perguntava-me como poderia algumas
pessoas ter tal sensibilidade para contornar formas, transformar sentimentos em
detalhes e acima de tudo, distribuir paciência em tantas peças para que no fim,
todas tivessem tamanha formosura. Lembrei-me
de uma amiga que sempre se dedicou a aprender novas técnicas e maneiras de
pintar, desenhar e metamorfosear despejos em mimos. Recordei-me também, que
tentei criar algum elemento de arte, mas sempre falhara. Não enfureci, sabia
que o meu dom escondia-se no encanto das palavras e do amor.
O
proprietário que aparentava ter quase 70, e que pelo visto era totalmente angustiado,
recebeu-nos com um “Faço-lhes bem vindas e fiquem à vontade”. Rodamos por todo
o galpão e a cada novo segundo decorrido, eu e minha mãe nos olhávamos e
soltávamos exclamações de alegria, prazer e satisfação ligadas à surpresa de
tantas coisas encantáveis. Decidimos levar alguns objetos de decoração e uma
tábua de cortar no contorno de peixe.
No
fim das compras, o homem travou uma longa conversa conosco onde revelou sua
longa história de audácia. Talvez tenha visto em nossas faces a imagem de confiança
e caridade e por isso decidiu desatar um desabafo. Começou contando um pouco
sobre sua realidade e depois num contexto incerto, não nos deixou perceber o
porquê de sua rotina.
Quando
rapaz foi um grande viajor solitário. Era do tipo esperto e vivia dos empregos
de pequena duração. Passou por Santos, Salvador, Belém, Curitiba, Cuiabá e
Buenos Aires. Nesses percursos tirou muitas fotos. Colecionou armas. Partiu
corações. Mas desde sempre, aprendera a produzir e nunca o deixou de fazer.
Guardava um segredo que era a chave de todas suas peripécias. Lembrava-me o
garoto cantado nas músicas dos Engenheiros, mas que não teve um fim na guerra. Aliás,
não lutou em uma, mas havia passado por batalhas individuais.
Possuía
uma paixão por aviões e também os colecionava em miniaturas. Gostava de
cozinhar as delicias regionais numa cozinha feita por ele mesmo. Na verdade,
toda sua casa fora construída por si de uma maneira isolada. Nas divisões dos
cômodos, havia dois quartos de visita, mas nunca foram usados. Seus únicos
hóspedes eram na realidade, os clientes e observadores do talento.
Era
de fato simples perceber seu jeito jovem: carro personalizado, o enlevo por
viagens e o estilo disperso. Nada negava. Contudo, foi com extremo pesar que
respondesse a nossa pergunta sobre família:
- Meus filhos são ricos e adultos. Moram em
Sinop, mas nunca se apresentaram aqui. Não conhecem meu trabalho, não conhecem minha
linda casa e muito menos todas as coisas que fiz inspirado neles. Chamam-me de
velho louco e abandonado e prometeram a si mesmos que não viriam. Os quartos de
visita são para uma vinda surpresa e cada cama que personalizei foi pensando
nitidamente em suas características.
Sua
fala foi tão pesarosa e medonha que me restringi ao perguntar sobre a mãe dos
filhos ou alguém que pudera ter sido sua esposa. Logo em seguida, mudou de
assunto como uma fuga do que o machuca tanto ao ponto de abrir mais a ferida de
um coração restrito. Ele tentava livrar-se da dor, mas confortava-se numa
existência cheia de barreiras.
Fui
convencida! Ele era uma criança envelhecida, com tudo que se mostrara, ele era!
É uma caixa a ser aberta e uma cena a ser estudada. E agora tudo estava certo.
Minha alma e coração estavam ali e não queriam partir. Mas já era hora.
Antes de
continuarmos nossa viagem, nos deu duas pedras bonitas e com cores fortes, que
segundo ele, as conquistara ao longo de tantas experiências. As quais, nada nos
fora revelado. Determinei que fosse a minha pedra da sorte, transmitia essa
ideia. E posteriormente, cumpriu-se a previsão.
Fiquei
extremamente comovida com tudo que vi e ouvi, mas não deixei de perguntar-me
sobre a divícia que havia ele construído para si em sua existência, e também
por que alguém de tão bom gosto ali sozinho se fixava. Isto porquê eu muito tinha
ouvido: o vazio é desespero. A herança ao próximo é o coração do pai. E “o de
bem deixa uma herança aos filhos de seus filhos, mas a riqueza do pecador é
depositada para o justo.” Afinal, qual o legado deste homem?
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