domingo, 10 de janeiro de 2016

LEGADO




O homem se perdeu, cego já não vê(..)
A ilusão de estar completo lentamente o desfaz
Tudo em busca de algo tolo que seu ego satisfaz
Tanto quero, tanto busco mas quando acabar
O que deixo?

SCALENE 
Quem diria que aquele senhor um dia fora alguém tão utopista quanto eu. O rosto com tantas rugas não escondia um passado difícil e controverso, porém naquela alma idosa habitava um aventureiro nato e corajoso. Confesso que admirei quando o vi apreciando músicas de grande valor, de belas letras e ritmos fluentes. Deve ser preconceito nosso de células jovens para com aqueles que já perderam tantas, posto que são estes nossos livros culturais e didáticos, nossos professores da vida e da labuta.  De qualquer maneira, fora este homem de mais idade que muito me admirou e surpreendeu.
               O conheci numa viagem curta, no entanto valorosa e um tanto cansativa. São Miguel do Guaporé não é uma cidade de atrativos comerciais, contudo possui uma beleza imensa quanto à natureza e ao próprio ambiente onde residem seus moradores. Além disso, passei as horas de estadia num pequeno hotel, pois o objetivo da ida era um negócio de minha genetriz e não algum programa meu. Confesso, nada tão agradável aos meus desejos.
               No fim, concluído o que se tinha de concluir, partimos. Nossa primeira e única parada no trajeto até minha casa foi à uma loja de artesanato cujo todos os objetos eram feitos de madeira pelo próprio vendedor. Ele não era um mero vendedor, mas sim um morador do paraíso artificial que fizera da sua venda. Enfim, algo que me interessava! Sempre achei genial a ideia de transformar o bruto em algo tão delicado e de pura beleza.
Assim que estacionamos, deparamo-nos com animais, balanços e tantas outras obras vindas de alguns restos de matéria-prima depositados no fundo do barracão onde guardava também seus exemplares maiores. Perguntava-me como poderia algumas pessoas ter tal sensibilidade para contornar formas, transformar sentimentos em detalhes e acima de tudo, distribuir paciência em tantas peças para que no fim, todas tivessem tamanha formosura.  Lembrei-me de uma amiga que sempre se dedicou a aprender novas técnicas e maneiras de pintar, desenhar e metamorfosear despejos em mimos. Recordei-me também, que tentei criar algum elemento de arte, mas sempre falhara. Não enfureci, sabia que o meu dom escondia-se no encanto das palavras e do amor.
               O proprietário que aparentava ter quase 70, e que pelo visto era totalmente angustiado, recebeu-nos com um “Faço-lhes bem vindas e fiquem à vontade”. Rodamos por todo o galpão e a cada novo segundo decorrido, eu e minha mãe nos olhávamos e soltávamos exclamações de alegria, prazer e satisfação ligadas à surpresa de tantas coisas encantáveis. Decidimos levar alguns objetos de decoração e uma tábua de cortar no contorno de peixe.
               No fim das compras, o homem travou uma longa conversa conosco onde revelou sua longa história de audácia. Talvez tenha visto em nossas faces a imagem de confiança e caridade e por isso decidiu desatar um desabafo. Começou contando um pouco sobre sua realidade e depois num contexto incerto, não nos deixou perceber o porquê de sua rotina.
               Quando rapaz foi um grande viajor solitário. Era do tipo esperto e vivia dos empregos de pequena duração. Passou por Santos, Salvador, Belém, Curitiba, Cuiabá e Buenos Aires. Nesses percursos tirou muitas fotos. Colecionou armas. Partiu corações. Mas desde sempre, aprendera a produzir e nunca o deixou de fazer. Guardava um segredo que era a chave de todas suas peripécias. Lembrava-me o garoto cantado nas músicas dos Engenheiros, mas que não teve um fim na guerra. Aliás, não lutou em uma, mas havia passado por batalhas individuais.
               Possuía uma paixão por aviões e também os colecionava em miniaturas. Gostava de cozinhar as delicias regionais numa cozinha feita por ele mesmo. Na verdade, toda sua casa fora construída por si de uma maneira isolada. Nas divisões dos cômodos, havia dois quartos de visita, mas nunca foram usados. Seus únicos hóspedes eram na realidade, os clientes e observadores do talento.
               Era de fato simples perceber seu jeito jovem: carro personalizado, o enlevo por viagens e o estilo disperso. Nada negava. Contudo, foi com extremo pesar que respondesse a nossa pergunta sobre família:
 - Meus filhos são ricos e adultos. Moram em Sinop, mas nunca se apresentaram aqui. Não conhecem meu trabalho, não conhecem minha linda casa e muito menos todas as coisas que fiz inspirado neles. Chamam-me de velho louco e abandonado e prometeram a si mesmos que não viriam. Os quartos de visita são para uma vinda surpresa e cada cama que personalizei foi pensando nitidamente em suas características.
               Sua fala foi tão pesarosa e medonha que me restringi ao perguntar sobre a mãe dos filhos ou alguém que pudera ter sido sua esposa. Logo em seguida, mudou de assunto como uma fuga do que o machuca tanto ao ponto de abrir mais a ferida de um coração restrito. Ele tentava livrar-se da dor, mas confortava-se numa existência cheia de barreiras.
               Fui convencida! Ele era uma criança envelhecida, com tudo que se mostrara, ele era! É uma caixa a ser aberta e uma cena a ser estudada. E agora tudo estava certo. Minha alma e coração estavam ali e não queriam partir. Mas já era hora.
Antes de continuarmos nossa viagem, nos deu duas pedras bonitas e com cores fortes, que segundo ele, as conquistara ao longo de tantas experiências. As quais, nada nos fora revelado. Determinei que fosse a minha pedra da sorte, transmitia essa ideia. E posteriormente, cumpriu-se a previsão.
               Fiquei extremamente comovida com tudo que vi e ouvi, mas não deixei de perguntar-me sobre a divícia que havia ele construído para si em sua existência, e também por que alguém de tão bom gosto ali sozinho se fixava. Isto porquê eu muito tinha ouvido: o vazio é desespero. A herança ao próximo é o coração do pai. E “o de bem deixa uma herança aos filhos de seus filhos, mas a riqueza do pecador é depositada para o justo.” Afinal, qual o legado deste homem?

                          


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