quarta-feira, 20 de abril de 2016

MENTECAPTO


     

The Weeping Woman - Pablo Picasso, 1937
Movimento Cubista. Defende o inconsciente, o imaginário, a loucura e o sonho.
Essa pintura a óleo traz resquícios de Guernica numa representação de Dora Maar.

     Admiro os loucos. Ah, antes eu fora tão dedicada a uma ideia só e a seguisse até o fim sem interromper seu curso e sua diretriz para questionar, repensar e, por vezes, retornar a um ponto retrocesso. Oh, tamanha força a dessas pessoas que iniciadas por ora, não cessam quanto não terminam sua obrigação. Por quantas vezes mantive atividades por inconcluso e não finalizara aquele projeto em que adentrara. Veja! Foram tantas e tantas que se as contasse para ti neste momento far-se-ia necessário convidar-lhe para um longo jantar seguido de dança ao madrugar e um belo desjejum ao pôr do sol. Sim, eu mesma com estes olhos que a terra há de comer e consumir em um processo biológico vi, por muitas oportunidades, surtos daqueles que muito ama o seu mister. Seja lá em nome do comunismo, da religião, da rebelião ou por volúpias individuais. Não vê? A paixão corrompe, transforma, fere e tormenta. Mesmo assim, admiro-os! Desejo profundamente que outrem calcule e estimem suas pujanças cá como são robustos em números e códigos como também por signos.

     A causa os toma por razão e motivo e isto os excitam de tal modo que valha-me Deus explicar! Ontem mesmo deparei-me com uma criaturinha moça que berrava aos pés dum senador e relembrava seus crimes do passado. Não me leiam por mal! O tempo do crime se faz no presente. E quem sou eu para questionar nosso Código! Peço-lhe paz e justiça tanto quanto generosidade e acima de tudo peço-lhe que rompa com o sofrimento das mais doces crianças que agora, recontam o tempo, pois visam seu tombamento. Porém, sem mais rodeios, a jovem moça gritava palavras baixas e frias. Não a julgo! Confesso que aquele senador carece da pior morte que já se ouvira relatar por nossas terras.
     Por fim, para que eu não fique a me prolongar e tomar-lhe o tempo, peço que leia com maior intuito, piedade e esmero esse discurso que lho faço. Não julgue aquilo que não sentira, não aponte se não viveste com todo amor e xodó uma desventura. Mas confesso: caso eu tomasse por bem rotear os vãos desígnios que assinalo em meu diário, pudesse denominar-me mentecapta antes! Maníaca e lunática: me recordem por anormal, psicopata, atípica e patológica, todavia não por incompleta. Ah, como rio disto que vós outros choram… Extasia-me!


Esse conto foi publicado anteriormente como presente e homenagem no blog Carta Aberta, organizado pelo querido Hernandes Augusto da Silva. Aqui deixo minha gratidão! 

domingo, 10 de abril de 2016

OTÁVIO






O Filho do Homem - René Magritte
1964

Magritte praticava o surrealismo realista, ou “realismo mágico”. No sentido da palavra surrealismo encontramos a ideia do desprezo da lógica e expressão do pensamento automático. É de se ouvir falar da correlação dessa palavra com a instituição da religião pois de um ponto de vista científico, essa última impediria que a logicidade humana alcançasse esse estado de razão acima do real que o surrealismo aborda. Por outro lado, poderiam se correlacionar porque a religião traria a quebra do pensamento metódico e tornaria a vivência dos seres automática. Assim, o catolicismo da época reagiu com antipatia a essa vanguarda. O objetivo do surrealismo foi promover uma revolução cultural e questionar os modos de vida vigentes. Aliás, disse Marx uma vez: A religião é o ópio do povo! 




               O ponto é que Otávio foi de tudo um pouco. Aquele velho ditado de não ser forte e sim flexível habilmente o minuciava. Porque dos seus intentos, somente ele detinha o entendimento e, para que opiniões fartas de desinformação e leiguice aprumassem sobre si, mal passava meia medida de tempo. Portanto, por gentileza e uma pitada de impaciência, ele ia deslocando seu juízo para consolidar um abecê da vida. “Ser moldável tal como lego”.
               E nessa variabilidade toda, gaiato malandro que é, escapuliu de tudo que era flechada de fundamentalismo, uma vez que sentindo-se coagido o mínimo que fosse, metia o pé nos ideais apresentados e partia para o próximo campo de exploração.  Seja lá religião ou coração, comunhão ou caminhão, política ou autocrítica. Dispensava qualquer negócio e batia as asas.
E não pense ser covardia não. Covarde é o que tomado de orgulho, nega que fora o que foi e mentirolando por aí, diz que se concebeu da forma atual e jamais modificou-se. Tolo! Heráclito revelou a premissa e os frívolos negam a admitir a culpa. Para ser mais exato, ele enunciou desse jeito: Ninguém desce duas vezes o mesmo rio. Vitória nossa que Otávio sempre reconheceu isso.
Enfim. Sem-fim. Bonfim. Afunilemos cá pro canto e voltemos na fé. Soa engraçado, no entanto, sondemos sua história. Foi cristão por uma porção grande de período. Aí, cansado de Deus, teve-se por cético. Exclusivista demais para ser nomeado como descrente, filiou-se numa seita. Considerando a definição de negar algum fundamento da bíblia e das colunas pentecostais, negou Jesus. Não propriamente sua existência, porém seu privilégio paternal e profético. Até aqui passara-se cerca de cinco ou seis datas.
Então achou por bem, ser neoliberal. Ele auto elucidava como aquilo que vendo no próprio universo suas metas explicações, desprezava a instituição espiritual. Nutriu entre paredes uma breve experiência com a cristandade novamente, coisa rápida. A partir daí, resultou-se admirador e unificador, pois consolidou para si uma ideologia pessoal e única, misto de reflexões hinduístas, judaicas, muçulmanas e cristãs. Levou em conta também todas as pequenas mitologias (isto porque todas são em proporções diferenciadas mitológicas) e histórias tribais.
De fato, tribal foi um termo muito usado por Otávio. Suas lições de tal maneira sociológicas diziam das crenças sobrenaturais e das origens de suas necessidades. Embora o julgassem cheio de racionalidade, nunca consegui enxergar na fé senão um motivo maior de se subsistir do que a própria racionalidade de quem a tem. Numa analogia simplista, o que crê é o tutor da sua fé porque foi o tutelado da sua própria sensibilidade moralista. E vislumbrar o mundo cuidando de observar cada cor nativa de cada cultura, desvendando o preto e branco dos mistérios naturais é só assumir que a terra é mais graciosa com respeito e pluralidade num plano similar.
De agora em diante é de se prever em que estado abstrato esse rapaz se encaixa. Ele sossegou. No mais calmo sentido da palavra. No mais imaginário valor literário e amável dessa história. Apesar disso, como é de se relembrar, o ponto é que Otávio foi de tudo um pouco. E tão moldável e ajustável que é, pode deixar de crer no que crê atualmente e construir da mais profunda fundação um intelecto novo e firmado. É isto a maravilha! O assombro que carrego frente ao fenomenal prodígio se deve a esplendorosa versatilidade. Os adjetivos referenciais são sua multifuncionalidade, seu capricho instável, suas facetas variantes, sua química polivalente e daí para o além.
Da última vez que conversamos, encontramo-nos em uma pequena praça que possuía como vista em ambos os lados laterais prédios espelhados. Já na frontaria, encontrávamos uma venda de picolés, umas três ou quatro sorveterias, seguida de investimentos em paletas e açaí. Essa é a justificativa empreendedora de uma região tropical e demasiadamente mais quente que outras. Debaixo de uma frondosa e folhenta amendoeira de Drummond, sentamos na grama rasa. Fez coerências conforme ia surgindo vigor por entre os ventos rápidos e refrescantes. Explanou sobre a logicidade dos voos e a inteligência na diversidade de espécies. Do princípio da criação de uma ideia, tal como do princípio do fim do que já fora inventado. Contou da serenidade que vivia a não se preocupar com certas questões filosóficas impostas por pilares doutrinários. Otávio é mesmo de se reverenciar.
Sendo assim, no que acredita ele nesta fase presente? Afirma não participar de tradições anímicas tampouco quer seguir o ritmo brasileiro entre católicos e protestantes. Tem paixão pelo taoísmo e budismo, contudo não adere delas nenhuma tradição. Acontece que Otávio é atrevido e soberano. Se libertou de si e hoje é um independente documentado. Tem autonomia de seus raciocínios e cumprimento pela ordem universal, ordem que rege conscientemente ou não os humanos. Tem para si que em um só encontramos Allah, Deus, Brahma, Oxalá, Caos, Maki Maki ou Gamab. Enxerga em sua presença a suprema razão de buscar felicidade pura e que não fira outrem.  Não se denomina ateu, porquanto obviamente não é. Não se torna herege, dado que no segmento cristão não se filia. Se chama genuinamente imune. Perguntado o porquê, disse-me que entre paz e guerra, prefere a normalidade.
Fruto da prosa, ganhei uma percepção aflorada da totalidade e uma memória crítica para desenvolver essa narrativa. Do mesmo modo, assenti em me entusiasmar mais pela pessoalidade do moço. Concluí por mim mesma que deveria reexaminar meu levar da existência e reconsiderar experiências. Estando ele correto ou não, a circunstância é o feito que muitos numa vida não o faz: se descobrir. Mas acima de qualquer verdade de Otávio, o segundo fato é que de todos os meus anos de lida, ele é a melhor pessoa que conheci.