quarta-feira, 15 de junho de 2016

Política Familiar



               Numa noite histórica debatiam mãe e filha da desordem nacional:
               — Balela! Ela sair dessa maneira? Duvido muito...
               — Ah, mãe, seja sincera: há motivos, não há? Há uma massa almejando por isso, não há?
               — Há, há. Contudo, miudinha, as coisas não são assim. Olha, sente-se. Enquanto eu preparo o café você vai me ouvindo.
               Sentou-se a menina. Curiosa, astuta, participante sem faltas do clube de debates políticos do colégio Marechal Rondon e, sem menos desprezo, filha da D. Maria Bernadete dos Anjos, a mais ávida ouvinte da rádio A.M Meridional. O que isso significa? Que era reclamona. Sim, de tudo, de todos. Entretanto, sábia por 48 anos excitantes de vida, podia prever das consequências de movimentos momentâneos de oposição. Bradou:
               — Aos meus 16 anos, secundarista do Cecília Meireles, ajudante de impressão do jornal local curitibano e apaixonada por seu pai, ia eu saltitante pela Av. Sete de Setembro e...
(PAUSA)
—Vai mamãe, termine!
               — Ô garota apressada, a água está fervendo, me deixa acrescentar o pó.
               Menina danada. Desde pequena não sabia esperar. Arrisco dizer que a juventude anos 2000 é bem desse tipinho. Sem estratégia, sabe? Não é A + B, para eles, A é quando se quer A e B, quando se quer B. Não, não! É A + B, ou seja, planejemos com cuidado passo a passo, degrau a degrau e pronto, um C rechonchudo de vitalidade. Essa juventude, viu?!
               –– Vamos lá. Ia eu pela Av. Sete de Setembro quando uma renca de garotinhos branquelos, mocassim de couro, óculos Ray-Ban, gritavam: Eu quero votar pra presidente DIRETAS JÁ! DIRETAS JÁ! Eu quero... E berravam a frase. Mas sabe de uma coisa minha filha? Collor de Mello, nosso primeiro presidente eleito pelas Diretas Já foi impeachmado. O que você conclui?
               Muxoxou a garota, olhou para o teto (teias de aranha) e o cérebro maquinava (teias de aranha). Foi confiante:
               — Ora mamãe, ele foi um mau presidente e portanto, tiraram ele. Normal!
               — Normal, amada? Não, não! Pode ser tudo, menos normal.
               —O que a senhora está tentando me dizer?
               —Que nossa democracia, jovenzinha demais, impopular demais, frenética demais, moralista demais, justiceira demais, enfiou seu amado país num buraco bem feio, para não dizer outra coisa.
               —Ah, entendi: o impeachment do Collor não foi tão bom assim, uhum. 
               —Não, você não entendeu foi nada. Que merda Carolina! Vamos tentar de novo. Os ‘Cara Pintadas’, já falaram disso no seu clubezinho de política? Enfim... Espero que sim. Esses aí, quem eram esses aí? Classe média, teóricos da ética. Pobre que era pobre estava trabalhando. A política minha filha, me deixa te falar uma coisa, não é completa e nunca vai ser, porque quando for, então deixará de ser política. Política, Carolina, é uma vontade imensa de tentar organizar as cartas do baralho de forma que elas fiquem estritamente marcadas. Povo é povo e só serve para eleger. A política é insaciável tanto quanto o próprio eleitorado. É desejo, é platônico, é aristotélico. É luta. Sim, Manin falou de luta. E se você não falar de Manin no seu clubezinho eu mesma irei lá e...
               —Mãe, foca no que você tem de falar, debatemos do ‘clubezinho’ depois!
               —Está bem. O fato querida é que, em 92 aquela mesma molecada estava pedindo a saída do Fernando. Pouco mais de dois, D-O-I-S míseros anos. O cara saiu. PSDB e PT. Virou esse inferno. Um rombo do tamanho... Deixa para lá. Prejuízos. SÓ prejuízos. Já tivemos ditadura, constituição feita à mercê de interesses bonitinhos dos partidos novos, uma república mal implantada, golpe, golpe, golpe... Eu só quero que você entenda que uma coisa é uma coisa e outra é outra e, agora não é hora de fazer o que estão pretendendo fazer. Não é hora de outro impeachment. Te falei tudo isso para você colocar nessa sua cabeça de vento que não é hora. Nós merecemos o melhor, sim, óbvio. E o que é o melhor? Menos um ou menos dois? A mudança vem de dentro, atravessa essa carne macia e exalta o mundo. E assim vai andando a história lado a lado de sua melhor amiga, ela se chama PODER. É tudo tão recente, precisamos entender tanta coisa sobre a malícia política. Ah, minha filha... Será que você me entendeu?
               Silêncio. Pequenos serezinhos se mexiam no espírito da menina e, o que menos se encontrava por lá, agora, era samba. Matutou sozinha: Eu sou do povo, eu sou um Zé-Ninguém! Que orgulho sentia da mãe. Que feliz era de ser brasileira. País abençoado, não é? Silêncio. Mais silêncio. Acabou soltando:
               — Mãe, você quer ir comigo no Clube de Política na quinta às 8?
               Sorriu a senhora. A menina havia compreendido a mensagem. Gargalhou estridentemente. Ela já era uma mocinha.
               —Claro, claro! Ah, mas que honra! Que honra! Vou até... – fora interrompida por uma vozinha medonha.
               —D. Maria Bernadete, a senhora sabe de uma coisa? Esquecemos do café! – lamentou Carolina.
               —Ah, minha nossa! Não é que esquecemos mesmo? - chacoalhou a cabeça. Não obstante, completou:
               — Liga a TV, vai, tomamos o café da tarde contemplando o show nosso de cada dia!
Alegraram-se as duas.

               



quarta-feira, 8 de junho de 2016

O DESINVENTAR DA LITERATURA

       
      
                Após uma pequena temporada de dias direcionados somente a escrita e a leitura, tempos antes de me dedicar completamente ao curso de Direito, fui tomada de uma reflexão empírica dos fatos decorridos naquele verão. Concluí, certeiramente, de que compor, aquilo que vinha eu fazendo todas as manhãs e tardes na biblioteca Monteiro Lobato, era uma fragmentação total do que já fora, do que é, e do que há de ser. Transpor ao papel as experiências vividas, aquelas ainda no campo das ideias e as outras roubadas bondosamente das essências pessoais de amigos, eram afinal, uma grande e agradável desinvenção.
               Descobri, infinitamente alegre, que a literatura, e suas obras, decerto são todas um imenso acervo acerca de esmigalharias, estilhaços moídos de centenas de concepções, ideias, abstrações e idealizações. Criar, conceber de si uma produção todinha sua, demanda do autor ou daquele que rege as invencionices, uma habilidosa coragem de tomar para si um tanto do outro. O literato, deve sem timidez, possuir os ares da natureza, as paixões secretas, as fantasias perigosas e, dissecar tal qual o anatomista a percepção de um terceiro, deixando tão claro suas histórias, que até mesmo aquele no qual fora inspirado a escrita, fica boquiaberto com tamanha compreensão do poeta.
               Até chegam a dizer: ele escreve como se tivesse vivido toda a minha vida! Contudo, o cronista, o contista, o trovador e toda a raça das letras, nada viveu do outro, tampouco vive a sua. Na verdade, esses se escondem em quartos repletos de livros, papéis, papéis e livros. Hora ou outra, buscam uma praça, uma biblioteca e na dúvida, segue faceiro para uma livraria. São comumente pouco vistos. A questão é que, desinventar foi a minha fascinante descoberta a respeito dos escritores. Um paradoxo onde criar significa despedaçar algo, no intuito de analisar, raciocinar, das palavras, do porquê, do fim e do sistema do objeto examinado. Em seguida, com as partes ali, desmontadas, tipificadas como Weber ensinou, se pode, finalmente, TRAMAR.
               O escritor vai sumindo (não porque se tornou insociável), porém vai desaparecendo, perdendo a cor, se tornando invisível, morrendo em si, para então, assim, sem se ver, ser capaz de enxergar tudo e todos, como se fosse o próprio Deus. Ele é o Deus da sua novela, ele dá a vida e a tira. Ele permite, porém zangado, descria. É o portador do sopro vital, que leva ao paraíso ou ao inferno. É o julgador e, também o próprio juízo. Sua consciência, saciada de desejos literários, despidos do pudor dos poemas, das poesias, dos versos não rimáveis, anti barroco, pornograficamente cheios de curvas dramáticas, sussurra com voz de donzela:
               — Desinveste-se, desinveste-se!
Ele, apaixonado, cai em tentação. Viaja por mundos em momento algum tidos como seus. Extraviado de quem nascera, agora é qualquer um. É Gatsby, é Mr. Darcy, é Brás Cubas, é Dreyfus, é Harry Quebert, é Dom Pedro I. É Marcela, é Jane, é Capitu, é Charlotte, Ilsa Lund, é Júlia. Pode ser tudo, menos ele. É todos, contudo não é só ele. Desinventou-se, oras! A arte literária lhe exige isso.
               E, consequentemente, depois de haver aprendido dessa chave, jamais morre. Um escritor só pode ser morto por um outro, mas nunca por si mesmo. Até quando acha que perdeu suas forças, que não sabe mais escrever, praguejando que sumiu seu talento e já não tem mais inspiração, mesmo aí, desinventando-se novamente, reavive em si o fogo da ficção.

               Eu, por mais repleta de tarefas que esteja, por mais farta das leis, dos códigos, das jurisprudências, das doutrinas do Direito, por mais ávida atuante, não deixo de ser o que quis ser: e-s-c-r-i-t-o-r-a. Solto sempre por onde passo, um conto, uma crônica, uma fábula, porém nunca, um nada. Ser escritor é um modo de vida e não exatamente o fato de ter lançado fabulosos best-sellers adaptados cinematograficamente. Quantos Drummonzinhos se escondem pelas ruelas brasileiras? Alguns, infelizmente, não serão nem descobertos. O escritor, o verdadeiro escritor, desinventa-se de si para ser, idealmente, ele mesmo e quem mais ele desejar ser.

CONCISÃO

Line Drawing - Picasso 


PRÓLOGO
A vida é linear. Seu fim é um mal súbito. O início de alguém é a morte de outrem. Ser é fingir. Isto é a concisão.
*
Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso. Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso. Seja conciso.
Seja conciso.

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Maria morreu no dia 29 de dezembro de 1923. Suicidou-se. Não entenderam seus vizinhos o porquê. Tinha 34 anos. Nenhum filho. Nenhum cachorro. Nenhum gato. Nem marido. Nem mãe. Nem pai. Nem avós. Nenhum irmão. Nenhuma irmã. Não tinha amigos. Não tinha casa. Não sorria. Não amava. Não era bonita. Não se via. Não existia.
Escrevia. Bebia. Fumava.
Portanto, suicidou-se. Não entenderam seus vizinhos o porquê. Tinha 34 anos. Atirou no peito, o centro dos males, na Praça Quinze de Novembro no Rio de Janeiro.

*
Decidiu em 1922. Encerraria de vez essa desordem. Levantava-se, rodava pela sala que lhe dispuseram em 1921 em troca de serviços na Hotelaria Gamboa, sentava-se, levantava-se novamente e assim, seguia sua andança pelo cubículo. Era uma saleta ao fundo do depósito de alimentos, úmido, mofado e sem ventilação. Ali decidiu que iria morrer. Se até a data marcada a vida não tomasse partido, ela mesma faria o serviço. Por admirar a Praça Quinze de Novembro, afirmou para si que ali seria ideal.

*
Em 1920, jogando a vida com o destino, sofreu xeque-mate. Amava as escondidas Gilberto, o cozinheiro da Hotelaria Gamboa. Era casado o homem. Certa de que não seria adúltera, o admirava somente. Nada mais.
Porém, tornou-se o varão repentinamente tísico em último estágio, morrendo em poucos dias. Maria desejava no jogo do desdém ao menos a posse da companhia no falecimento, o mais baixo dos quereres. Nem isso teve.
Não foi ao enterro. Sentia inveja da esposa, Gilberto morrera em seus braços. 

*
Este é o relato do único prazer experimentado por Maria.
Conhecera Alberto na Rua do Ouvidor. Andava tão depressa o moço, que seu lenço voara sem que ele o desse por perdido. Maria, que saía de um entroncamento, tomando o lenço ainda no ar, deduziu pela inexistência de qualquer outro senhor naquele instante, que fosse mesmo dele o encontrado. Acelerou o passo e o chamou freneticamente. Tinha pressa também. Desejava chegar à Gamboa antes que Gilberto partisse. Trocar saudações com o amado era para ela o ápice da satisfação.
Alberto subitamente tornou-se para ela, tomou-lhe o lenço, agradeceu e seguiu novamente. Não dera muitos passos para que pudesse retornar. Gritou a mulher que ia longe. Alcançou-a. Ela deu-lhe a atenção. Tomou ele sua mão e a acariciou. Mas também achegou-se nela. Ela, confusa, cedeu. Beijaram-se. Soltou-se dele depois de já ter saciado o desejo. Correu. Não se viram mais.

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Em maio de 1910, aos 21, imaculada, com a mãe doceira prestes a findar-se, caminhando num beco da Glória, foi assaltada por um pirralho negrinho. Tomou-lhe o moleque seus únicos tostões para pagar à mãe a visita de um médico. A mãe morreu na mesma noite. Desinfeliz do negrinho!

*
Maria foi concebida em uma relação canalha. Revelou a mãe, Inês, em 1909, que não, o pai de Maria não havia morrido. Provavelmente estava bem vivo. Carlos era da Infantaria do Exército. Passou uma temporada no Rio com a guarnição em meados de 1888. Encantou-se com Inês e prometeu a ela que desistiria da vida militar para que pudessem fugir juntos.
Inês era só. Sem pai. Sem mãe. Recebia ajuda de boas damas que lhe deram abrigo desde que nascera. Agora, aos 15 anos, estava apaixonada e pretendia partir. Contudo, para sua inocente surpresa, a guarnição retirara-se um dia antes da data marcada rumo a São Paulo e junto fora Carlos, deixando buchuda Inês. Chocou-se Maria. O pai era um desgraçado!

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1900. Primeiro dia do ano. Sentia-se estranha. Mal quista. Mal vista. Sem jeito. Sem inteligência. Era uma pobre infeliz. Não fez nenhuma promessa. Para quê? Nada que desejasse viria realizar-se. Abraçou a mãe, abraçando a mãe à filha também. Não perderam tempo. Foram confeitar doces para vender. Questão de sobrevivência.

*
Três de fevereiro de 1889 às 8:41 da manhã. A parteira Francisca mostrou luz à Maria do Carmo de Oliveira.

*

“Jornal do Brasil, 29 de Dezembro de 1923, Rio de Janeiro.
Passados quinze dias desde a assinatura do Pacto de Pedras Altas, o Rio Grande do Sul vive relativa paz após onze meses de tensão política”.
Não noticiaram a morte de Maria.

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EPÍLOGO

Não se engane, leitor. Maria não morreu de solidão. Morreu de satisfação. A narração fora tão concisa até aqui que se esquecera de esclarecer os fatos.
Maria era tão feliz com tudo, apesar da miséria, da má sorte, da solitude, que certo dia, indignada consigo mesma, com tamanha frieza e insensibilidade em relação as coisas que lhe ocorreram até ali, que achou-se má. Era uma egoísta desalmada.

— Qual que nesse inferno de vida gargalha todos os dias? Sou louca, ora! — Bradou.

Diagnosticando-se erroneamente como mentecapta, encerrou-lhe a vida por incompreensão. Maria era, na verdade, conformada e não louca. Suicidou-se por concisão. Tal qual foi o espanto dos vizinhos. Besta!

*

A concisão é o mal súbito da vida. Chama-se morte. 

quarta-feira, 1 de junho de 2016

#EstuproNãoÉCulpaDaVítima


#EstuproNãoÉCulpaDaVítima

ANTES     
           
Minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Essa foi a época em que morei numa residência totalmente feminina e empoderada. Éramos três em número e geração: filha, mãe e avó. E sem medo de errar, reafirmo: minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Digo isso porque hoje sei convictamente das condições da existência, dos embaraços das idades e das adversidades que há entre as pessoas.
                Era um período de hábitos e costumes rígidos. Afora isso, sentia-me bem amada e contente. Essencialmente, eu me levantava às quatro da manhã e me deitava às nove da noite. ‘Quatro horas da manhã?’, pasmados estão aqueles que leem isso. Sim! Às quatro porque acordar antes do sol nascer me fazia crer na esperança de dias melhores e na benevolência do mundo. E também às quatro, porque no instante das duas horas até que a cidadela acordasse absolutamente e que do lar todos despertassem, eu tinha o espaço e o tempo necessário para limpar e organizar tudo, cumprindo assim, meus deveres domésticos diários.
A situação se parece tão absurda, insensata para uma criança de doze. Coisa alguma! Para mim, era divino. Uma rotina gloriosamente adulta. Nada disso era um estorvo. O que digo é que esse modo de vida fazia-me a pessoa mais feliz no mundo.
Eu era uma adolescente que ignorava a problemática dessa fase em máscaras cronológicas. A adjetivação de ‘turbulência’ para o estágio de amadurecimento é uma tentativa de ultrapassar o sentido substancial da palavra e abranger o mito da dura e cruel transição da infância para outro ciclo. E não digo um ciclo superior, mas um ciclo ordinário.
Eu era feliz porque para mim o mundo me era lícito, agradável e seguro. Porque estar cercada de mulheres veementes e intensas me tornava uma jovem heroína. Porque apesar dos pesadelos que me assolavam todas as noites, às quatro, quando eu me levantasse, eu renasceria do dia anterior e tudo estaria bem novamente. Era feliz porque eu me sentia completa pela plenitude da família, não precisando de mais ninguém para nos fazer sentir como uma.
Era prudente também. O era porque o hábito e a rotina significavam uma naturalidade onde os fins justificavam os meios. Porque essa mesma rotina me dignificava na consciência infantil. Porque eu simplesmente não entendia dos temores que passam ter as mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres. 
Eu fui feliz. Fui feliz até meus 14 anos.

DURANTE

Flashbacks.
Estou viva? Por que meus braços não respondem aos meus estímulos? Minha boca não fala as coisas que estou implorando que ela as diga. Por que desaparecera minha voz? Eu não consigo reagir. O que está havendo?
Flashbacks.
“Não, eu não quero”. “Não”. “Pare”. “Me solta”. “Me deixa ir embora”.
Flashbacks.
Estou me opondo, porém as forças são nulas. Quem é você? Eu não sei quem você é. Eu não te amo. Quem é você? Quem é você?
Flashbacks.
As luzes se acendem e se apagam freneticamente. O QUE ESTÁ ACONTECENDO?

DEPOIS
Eu fui feliz. Fui feliz até meus 14 anos. Fui porque simplesmente eu não entendia dos temores que passam ter as mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres.  Afinal, o que as tornam adultas? A natureza de cada uma ou a tragédia que advém a todas elas?
Eu me tornei aos 15. Forçadamente, é o que eu quero dizer. Deixei de acordar às quatro e de me deitar às nove. Adultos são inconstantes, portanto não têm horários fixos. Dependem de suas consciências machucadas. Quando as feridas param de latejar, dormem. Se latejam por uma vida inteira, nunca descansam então. 
 Após o acontecido, mudamos de casa. A que eu limpava com tanta disposição e que me protegia da loucura da cidade se despindo às seis. Minha segurança extinguiu-se num ato irremediável. Nós — filha, mãe e avó — deixamos de ser felizes. Isto porque uma sombra terrível encobertou nossa família que, mesmo com tudo, não deixou de ser independente e autônoma.
Não digo muito mais desse ciclo ordinário posterior porque não tenho desejo. Nem meço aqui minha desgraça e flagelo, porque não sou capaz de fazê-lo. Meu drama é um infortúnio das criaturas vivas. Uma tragédia.
As circunstâncias da vida, citadas dezenas de vezes pelos poetas esquálidos e inertes, me entregaram ainda tão jovem, tão criança, para os braços do destino. Para quê? Não sei. Somente sei explanar o quanto me tornei infeliz e amargurada.
Este relato é sobre como é passar a acordar às quatro sem que o pesadelo magicamente desapareça. Isto é sobre ser violada. Este relato é para dizer que minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Depois disso, eu me apaguei.


#EstuproNãoÉCulpaDaVítima