quarta-feira, 8 de junho de 2016

O DESINVENTAR DA LITERATURA

       
      
                Após uma pequena temporada de dias direcionados somente a escrita e a leitura, tempos antes de me dedicar completamente ao curso de Direito, fui tomada de uma reflexão empírica dos fatos decorridos naquele verão. Concluí, certeiramente, de que compor, aquilo que vinha eu fazendo todas as manhãs e tardes na biblioteca Monteiro Lobato, era uma fragmentação total do que já fora, do que é, e do que há de ser. Transpor ao papel as experiências vividas, aquelas ainda no campo das ideias e as outras roubadas bondosamente das essências pessoais de amigos, eram afinal, uma grande e agradável desinvenção.
               Descobri, infinitamente alegre, que a literatura, e suas obras, decerto são todas um imenso acervo acerca de esmigalharias, estilhaços moídos de centenas de concepções, ideias, abstrações e idealizações. Criar, conceber de si uma produção todinha sua, demanda do autor ou daquele que rege as invencionices, uma habilidosa coragem de tomar para si um tanto do outro. O literato, deve sem timidez, possuir os ares da natureza, as paixões secretas, as fantasias perigosas e, dissecar tal qual o anatomista a percepção de um terceiro, deixando tão claro suas histórias, que até mesmo aquele no qual fora inspirado a escrita, fica boquiaberto com tamanha compreensão do poeta.
               Até chegam a dizer: ele escreve como se tivesse vivido toda a minha vida! Contudo, o cronista, o contista, o trovador e toda a raça das letras, nada viveu do outro, tampouco vive a sua. Na verdade, esses se escondem em quartos repletos de livros, papéis, papéis e livros. Hora ou outra, buscam uma praça, uma biblioteca e na dúvida, segue faceiro para uma livraria. São comumente pouco vistos. A questão é que, desinventar foi a minha fascinante descoberta a respeito dos escritores. Um paradoxo onde criar significa despedaçar algo, no intuito de analisar, raciocinar, das palavras, do porquê, do fim e do sistema do objeto examinado. Em seguida, com as partes ali, desmontadas, tipificadas como Weber ensinou, se pode, finalmente, TRAMAR.
               O escritor vai sumindo (não porque se tornou insociável), porém vai desaparecendo, perdendo a cor, se tornando invisível, morrendo em si, para então, assim, sem se ver, ser capaz de enxergar tudo e todos, como se fosse o próprio Deus. Ele é o Deus da sua novela, ele dá a vida e a tira. Ele permite, porém zangado, descria. É o portador do sopro vital, que leva ao paraíso ou ao inferno. É o julgador e, também o próprio juízo. Sua consciência, saciada de desejos literários, despidos do pudor dos poemas, das poesias, dos versos não rimáveis, anti barroco, pornograficamente cheios de curvas dramáticas, sussurra com voz de donzela:
               — Desinveste-se, desinveste-se!
Ele, apaixonado, cai em tentação. Viaja por mundos em momento algum tidos como seus. Extraviado de quem nascera, agora é qualquer um. É Gatsby, é Mr. Darcy, é Brás Cubas, é Dreyfus, é Harry Quebert, é Dom Pedro I. É Marcela, é Jane, é Capitu, é Charlotte, Ilsa Lund, é Júlia. Pode ser tudo, menos ele. É todos, contudo não é só ele. Desinventou-se, oras! A arte literária lhe exige isso.
               E, consequentemente, depois de haver aprendido dessa chave, jamais morre. Um escritor só pode ser morto por um outro, mas nunca por si mesmo. Até quando acha que perdeu suas forças, que não sabe mais escrever, praguejando que sumiu seu talento e já não tem mais inspiração, mesmo aí, desinventando-se novamente, reavive em si o fogo da ficção.

               Eu, por mais repleta de tarefas que esteja, por mais farta das leis, dos códigos, das jurisprudências, das doutrinas do Direito, por mais ávida atuante, não deixo de ser o que quis ser: e-s-c-r-i-t-o-r-a. Solto sempre por onde passo, um conto, uma crônica, uma fábula, porém nunca, um nada. Ser escritor é um modo de vida e não exatamente o fato de ter lançado fabulosos best-sellers adaptados cinematograficamente. Quantos Drummonzinhos se escondem pelas ruelas brasileiras? Alguns, infelizmente, não serão nem descobertos. O escritor, o verdadeiro escritor, desinventa-se de si para ser, idealmente, ele mesmo e quem mais ele desejar ser.

4 comentários:

  1. Que doçura e sinceridade. Virtuoso e simbiótico, quase caótico a beira do sutil. Só não direi hostil, já dizendo, pois estou me remoendo e também sou sincero quando digo, quero continuar lendo e me ferindo, uma escrita debruçada com vontade, é maior que qualquer escrito feita somente na vaidade. Verdade, verdade... Continuarei lendo-a!

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    1. Olá Paulo, tudo bem? Agradeço inicialmente pela disposição de comentar e de se tornar leitor desse projeto realizado com tanto amor. Numa breve descrição do blog feito logo no seu início, eu dizia que o objetivo dele era sensibilizar quem lesse, como um toque, de todas as formas; por exemplo, ser ferido ou conscientizado. As portas estão abertas para que acompanhe as publicações. Eu que fico imensamente grata. Abraço :)

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  2. 17 anos e escreve com tamanha autoridade? Não me surpreenderei quando encontrar um livro seu numa livraria. Seu texto remete à grandeza de tempos idos, tempos que já vão longe nos incansáveis corcéis do passado. Parabéns!!!! Mui, mui belo texto!

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    1. Olá Gerson. Já dizia minha mãe: competência não tem idade! Adoro quando ela diz isso! Enfim...Muito, muito obrigada. Agradeço a leitura. Abraço :D

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