O DESINVENTAR DA LITERATURA
Após uma pequena temporada de dias direcionados somente a escrita e a leitura, tempos antes de me dedicar completamente ao curso de Direito, fui tomada de uma reflexão empírica dos fatos decorridos naquele verão. Concluí, certeiramente, de que compor, aquilo que vinha eu fazendo todas as manhãs e tardes na biblioteca Monteiro Lobato, era uma fragmentação total do que já fora, do que é, e do que há de ser. Transpor ao papel as experiências vividas, aquelas ainda no campo das ideias e as outras roubadas bondosamente das essências pessoais de amigos, eram afinal, uma grande e agradável desinvenção.
Descobri,
infinitamente alegre, que a literatura, e suas obras, decerto são todas um
imenso acervo acerca de esmigalharias, estilhaços moídos de centenas de
concepções, ideias, abstrações e idealizações. Criar, conceber de si uma
produção todinha sua, demanda do autor ou daquele que rege as invencionices,
uma habilidosa coragem de tomar para si um tanto do outro. O literato, deve sem
timidez, possuir os ares da natureza, as paixões secretas, as fantasias
perigosas e, dissecar tal qual o anatomista a percepção de um terceiro,
deixando tão claro suas histórias, que até mesmo aquele no qual fora inspirado a
escrita, fica boquiaberto com tamanha compreensão do poeta.
Até
chegam a dizer: ele escreve como se tivesse vivido toda a minha vida! Contudo,
o cronista, o contista, o trovador e toda a raça das letras, nada viveu do
outro, tampouco vive a sua. Na verdade, esses se escondem em quartos repletos
de livros, papéis, papéis e livros. Hora ou outra, buscam uma praça, uma
biblioteca e na dúvida, segue faceiro para uma livraria. São comumente pouco
vistos. A questão é que, desinventar
foi a minha fascinante descoberta a respeito dos escritores. Um paradoxo onde
criar significa despedaçar algo, no intuito de analisar, raciocinar, das
palavras, do porquê, do fim e do sistema do objeto examinado. Em seguida, com
as partes ali, desmontadas, tipificadas como Weber ensinou, se pode,
finalmente, TRAMAR.
O
escritor vai sumindo (não porque se tornou insociável), porém vai
desaparecendo, perdendo a cor, se tornando invisível, morrendo em si, para
então, assim, sem se ver, ser capaz de enxergar tudo e todos, como se fosse o
próprio Deus. Ele é o Deus da sua novela, ele dá a vida e a tira. Ele permite,
porém zangado, descria. É o portador do sopro vital, que leva ao paraíso ou ao
inferno. É o julgador e, também o próprio juízo. Sua consciência, saciada de
desejos literários, despidos do pudor dos poemas, das poesias, dos versos não
rimáveis, anti barroco, pornograficamente cheios de curvas dramáticas, sussurra
com voz de donzela:
—
Desinveste-se, desinveste-se!
Ele,
apaixonado, cai em tentação. Viaja por mundos em momento algum tidos como seus.
Extraviado de quem nascera, agora é qualquer um. É Gatsby, é Mr. Darcy, é Brás
Cubas, é Dreyfus, é Harry Quebert, é Dom Pedro I. É Marcela, é Jane, é Capitu,
é Charlotte, Ilsa Lund, é Júlia. Pode ser tudo, menos ele. É todos, contudo não
é só ele. Desinventou-se, oras! A arte literária lhe exige isso.
E,
consequentemente, depois de haver aprendido dessa chave, jamais morre. Um
escritor só pode ser morto por um outro, mas nunca por si mesmo. Até quando
acha que perdeu suas forças, que não sabe mais escrever, praguejando que sumiu seu
talento e já não tem mais inspiração, mesmo aí, desinventando-se novamente, reavive em si o fogo da ficção.
Eu, por mais repleta de tarefas que esteja, por mais farta das leis, dos códigos, das jurisprudências, das doutrinas do Direito, por mais ávida atuante, não deixo de ser o que quis ser: e-s-c-r-i-t-o-r-a. Solto sempre por onde passo, um conto, uma crônica, uma fábula, porém nunca, um nada. Ser escritor é um modo de vida e não exatamente o fato de ter lançado fabulosos best-sellers adaptados cinematograficamente. Quantos Drummonzinhos se escondem pelas ruelas brasileiras? Alguns, infelizmente, não serão nem descobertos. O escritor, o verdadeiro escritor, desinventa-se de si para ser, idealmente, ele mesmo e quem mais ele desejar ser.
Que doçura e sinceridade. Virtuoso e simbiótico, quase caótico a beira do sutil. Só não direi hostil, já dizendo, pois estou me remoendo e também sou sincero quando digo, quero continuar lendo e me ferindo, uma escrita debruçada com vontade, é maior que qualquer escrito feita somente na vaidade. Verdade, verdade... Continuarei lendo-a!
ResponderExcluirOlá Paulo, tudo bem? Agradeço inicialmente pela disposição de comentar e de se tornar leitor desse projeto realizado com tanto amor. Numa breve descrição do blog feito logo no seu início, eu dizia que o objetivo dele era sensibilizar quem lesse, como um toque, de todas as formas; por exemplo, ser ferido ou conscientizado. As portas estão abertas para que acompanhe as publicações. Eu que fico imensamente grata. Abraço :)
Excluir17 anos e escreve com tamanha autoridade? Não me surpreenderei quando encontrar um livro seu numa livraria. Seu texto remete à grandeza de tempos idos, tempos que já vão longe nos incansáveis corcéis do passado. Parabéns!!!! Mui, mui belo texto!
ResponderExcluirOlá Gerson. Já dizia minha mãe: competência não tem idade! Adoro quando ela diz isso! Enfim...Muito, muito obrigada. Agradeço a leitura. Abraço :D
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