quarta-feira, 1 de junho de 2016

#EstuproNãoÉCulpaDaVítima


#EstuproNãoÉCulpaDaVítima

ANTES     
           
Minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Essa foi a época em que morei numa residência totalmente feminina e empoderada. Éramos três em número e geração: filha, mãe e avó. E sem medo de errar, reafirmo: minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Digo isso porque hoje sei convictamente das condições da existência, dos embaraços das idades e das adversidades que há entre as pessoas.
                Era um período de hábitos e costumes rígidos. Afora isso, sentia-me bem amada e contente. Essencialmente, eu me levantava às quatro da manhã e me deitava às nove da noite. ‘Quatro horas da manhã?’, pasmados estão aqueles que leem isso. Sim! Às quatro porque acordar antes do sol nascer me fazia crer na esperança de dias melhores e na benevolência do mundo. E também às quatro, porque no instante das duas horas até que a cidadela acordasse absolutamente e que do lar todos despertassem, eu tinha o espaço e o tempo necessário para limpar e organizar tudo, cumprindo assim, meus deveres domésticos diários.
A situação se parece tão absurda, insensata para uma criança de doze. Coisa alguma! Para mim, era divino. Uma rotina gloriosamente adulta. Nada disso era um estorvo. O que digo é que esse modo de vida fazia-me a pessoa mais feliz no mundo.
Eu era uma adolescente que ignorava a problemática dessa fase em máscaras cronológicas. A adjetivação de ‘turbulência’ para o estágio de amadurecimento é uma tentativa de ultrapassar o sentido substancial da palavra e abranger o mito da dura e cruel transição da infância para outro ciclo. E não digo um ciclo superior, mas um ciclo ordinário.
Eu era feliz porque para mim o mundo me era lícito, agradável e seguro. Porque estar cercada de mulheres veementes e intensas me tornava uma jovem heroína. Porque apesar dos pesadelos que me assolavam todas as noites, às quatro, quando eu me levantasse, eu renasceria do dia anterior e tudo estaria bem novamente. Era feliz porque eu me sentia completa pela plenitude da família, não precisando de mais ninguém para nos fazer sentir como uma.
Era prudente também. O era porque o hábito e a rotina significavam uma naturalidade onde os fins justificavam os meios. Porque essa mesma rotina me dignificava na consciência infantil. Porque eu simplesmente não entendia dos temores que passam ter as mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres. 
Eu fui feliz. Fui feliz até meus 14 anos.

DURANTE

Flashbacks.
Estou viva? Por que meus braços não respondem aos meus estímulos? Minha boca não fala as coisas que estou implorando que ela as diga. Por que desaparecera minha voz? Eu não consigo reagir. O que está havendo?
Flashbacks.
“Não, eu não quero”. “Não”. “Pare”. “Me solta”. “Me deixa ir embora”.
Flashbacks.
Estou me opondo, porém as forças são nulas. Quem é você? Eu não sei quem você é. Eu não te amo. Quem é você? Quem é você?
Flashbacks.
As luzes se acendem e se apagam freneticamente. O QUE ESTÁ ACONTECENDO?

DEPOIS
Eu fui feliz. Fui feliz até meus 14 anos. Fui porque simplesmente eu não entendia dos temores que passam ter as mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres.  Afinal, o que as tornam adultas? A natureza de cada uma ou a tragédia que advém a todas elas?
Eu me tornei aos 15. Forçadamente, é o que eu quero dizer. Deixei de acordar às quatro e de me deitar às nove. Adultos são inconstantes, portanto não têm horários fixos. Dependem de suas consciências machucadas. Quando as feridas param de latejar, dormem. Se latejam por uma vida inteira, nunca descansam então. 
 Após o acontecido, mudamos de casa. A que eu limpava com tanta disposição e que me protegia da loucura da cidade se despindo às seis. Minha segurança extinguiu-se num ato irremediável. Nós — filha, mãe e avó — deixamos de ser felizes. Isto porque uma sombra terrível encobertou nossa família que, mesmo com tudo, não deixou de ser independente e autônoma.
Não digo muito mais desse ciclo ordinário posterior porque não tenho desejo. Nem meço aqui minha desgraça e flagelo, porque não sou capaz de fazê-lo. Meu drama é um infortúnio das criaturas vivas. Uma tragédia.
As circunstâncias da vida, citadas dezenas de vezes pelos poetas esquálidos e inertes, me entregaram ainda tão jovem, tão criança, para os braços do destino. Para quê? Não sei. Somente sei explanar o quanto me tornei infeliz e amargurada.
Este relato é sobre como é passar a acordar às quatro sem que o pesadelo magicamente desapareça. Isto é sobre ser violada. Este relato é para dizer que minha fase de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Depois disso, eu me apaguei.


#EstuproNãoÉCulpaDaVítima

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