#EstuproNãoÉCulpaDaVítima
#EstuproNãoÉCulpaDaVítima
ANTES
Minha fase de
maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Essa foi a época em
que morei numa residência totalmente feminina e empoderada. Éramos três em
número e geração: filha, mãe e avó. E sem medo de errar, reafirmo: minha fase
de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Digo isso porque
hoje sei convictamente das condições da existência, dos embaraços das idades e
das adversidades que há entre as pessoas.
Era
um período de hábitos e costumes rígidos. Afora isso, sentia-me bem amada e
contente. Essencialmente, eu me levantava às quatro da manhã e me deitava às
nove da noite. ‘Quatro horas da manhã?’, pasmados estão aqueles que leem isso.
Sim! Às quatro porque acordar antes do sol nascer me fazia crer na esperança de
dias melhores e na benevolência do mundo. E também às quatro, porque no
instante das duas horas até que a cidadela acordasse absolutamente e que do lar
todos despertassem, eu tinha o espaço e o tempo necessário para limpar e
organizar tudo, cumprindo assim, meus deveres domésticos diários.
A situação se
parece tão absurda, insensata para uma criança de doze. Coisa alguma! Para mim,
era divino. Uma rotina gloriosamente adulta. Nada disso era um estorvo. O que
digo é que esse modo de vida fazia-me a pessoa mais feliz no mundo.
Eu era uma
adolescente que ignorava a problemática dessa fase em máscaras cronológicas. A
adjetivação de ‘turbulência’ para o estágio de amadurecimento é uma tentativa
de ultrapassar o sentido substancial da palavra e abranger o mito da dura e
cruel transição da infância para outro ciclo. E não digo um ciclo superior, mas
um ciclo ordinário.
Eu era feliz
porque para mim o mundo me era lícito, agradável e seguro. Porque estar cercada
de mulheres veementes e intensas me tornava uma jovem heroína. Porque apesar
dos pesadelos que me assolavam todas as noites, às quatro, quando eu me
levantasse, eu renasceria do dia anterior e tudo estaria bem novamente. Era
feliz porque eu me sentia completa pela plenitude da família, não precisando de
mais ninguém para nos fazer sentir como uma.
Era prudente
também. O era porque o hábito e a rotina significavam uma naturalidade onde os
fins justificavam os meios. Porque essa mesma rotina me dignificava na consciência
infantil. Porque eu simplesmente não entendia dos temores que passam ter as
mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres.
Eu fui feliz.
Fui feliz até meus 14 anos.
DURANTE
Flashbacks.
Estou viva?
Por que meus braços não respondem aos meus estímulos? Minha boca não fala as
coisas que estou implorando que ela as diga. Por que desaparecera minha voz? Eu
não consigo reagir. O que está havendo?
Flashbacks.
“Não, eu não
quero”. “Não”. “Pare”. “Me solta”. “Me deixa ir embora”.
Flashbacks.
Estou me
opondo, porém as forças são nulas. Quem é você? Eu não sei quem você é. Eu não
te amo. Quem é você? Quem é você?
Flashbacks.
As luzes se acendem
e se apagam freneticamente. O QUE ESTÁ ACONTECENDO?
DEPOIS
Eu fui feliz.
Fui feliz até meus 14 anos. Fui porque simplesmente eu não entendia dos temores
que passam ter as mulheres quando se sentem, finalmente, mulheres. Afinal, o que as tornam adultas? A natureza
de cada uma ou a tragédia que advém a todas elas?
Eu me tornei
aos 15. Forçadamente, é o que eu quero dizer. Deixei de acordar às quatro e de
me deitar às nove. Adultos são inconstantes, portanto não têm horários fixos.
Dependem de suas consciências machucadas. Quando as feridas param de latejar,
dormem. Se latejam por uma vida inteira, nunca descansam então.
Após o acontecido, mudamos de casa. A que eu
limpava com tanta disposição e que me protegia da loucura da cidade se despindo
às seis. Minha segurança extinguiu-se num ato irremediável. Nós — filha, mãe e
avó — deixamos de ser felizes. Isto porque uma sombra terrível encobertou nossa
família que, mesmo com tudo, não deixou de ser independente e autônoma.
Não digo muito
mais desse ciclo ordinário posterior porque não tenho desejo. Nem meço aqui
minha desgraça e flagelo, porque não sou capaz de fazê-lo. Meu drama é um
infortúnio das criaturas vivas. Uma tragédia.
As circunstâncias
da vida, citadas dezenas de vezes pelos poetas esquálidos e inertes, me
entregaram ainda tão jovem, tão criança, para os braços do destino. Para quê?
Não sei. Somente sei explanar o quanto me tornei infeliz e amargurada.
Este relato é
sobre como é passar a acordar às quatro sem que o pesadelo magicamente
desapareça. Isto é sobre ser violada. Este relato é para dizer que minha fase
de maior felicidade e bem-estar fora entre os 12 e 14 anos. Depois disso, eu me
apaguei.
#EstuproNãoÉCulpaDaVítima
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