BAGUNÇA PESSOAL
Agora chegou a vez, vou cantar Mulher brasileira em primeiro lugar Benito Di Paula |
“Cada um com
sua bagunça pessoal”, pensei. Tão mais fácil descer a ladeira, uma rodovia de
pedras com a vista pro mar. Enquanto isso, crianças brincam a par de tudo. “No final
da tarde, organizarei as papeladas”, concluí as ideias. Contudo, minha lógica estava
nos preços. O preço disso é aquilo, quem faz aqui colhe ali. Ok. O grande dia
vem.
“Passo a
frente, sempre em frente”, foi o que disse quando percebido que algo me seguia.
Tão sombrio. Estava pagando os pecados? Era um reflexo de quem anda em círculos
rumo a um caminho interno. Cada passo só me levava a um degrau mais profundo de
mim mesma. A essência já parecia muito inútil e o que eu mais precisava era
levar as tais compras até a casa da dona que eu trabalhava. Um trato, é um
trato. Por um salário eu fazia o papel de mulher, mãe e foz. E a minha biografia
se ia indo num dos bairros pobres da tão mísera cidade. Mas levando as verduras
de terça-feira, ótimo.
“Alguém te
espera, se aceite”, começava a remoer. Eu me prendia como se fosse uma bandida
e esquecia daqueles que apostavam suas vidas em mim. Eu não podia deixar que a
sombra me perseguisse onde eu fosse. Às 6 muitas bocas esperavam ser
alimentadas. A dona pretendia fazer uma salada pro jantar e, o dono uma saída a
negócios. Os meus gostariam de ver um filme com pipoca e tomar suco pronto de
morango. Coisa de criança.
“Faz uma
pausa, alguns minutinhos não te atrasará em nada”, olha que tinha até uns
pensamentos maldosos! O proletário não tem pausa, seja água ou vinho, massa ou
legume. O proletariado vai lá e não reclama de nada não. Ou faz ou fica sem
pão. Que descanso, que nada. Acelerei o passo, isso sim! Desci o morro e
arrisquei o medo num cordão. Cordão de Deus, que tocava e orava em perdão.
“Vamos mexer,
dançar um pouco”. É que num desses bares pequenos à frente, tocava The La’s.
Não, não era um mero boteco. Era algo do estilo old e vintage, diziam. Em
uma das letras, o meu retrato: ela lá vai indo, e vai indo novamente. Na outra,
poetizavam que a melodia sempre nos encontra. Não discordava. “Se olhar na sua
mente, você sabe o que você vai encontrar. Abra-a”. Era o que soava no
crepúsculo de todos os dias. E eu aprendi a repassar. Com o tempo fui camaleão.
Nos habitats da terra, dos sentimentos escondidos. E então por que não se
agitar com essas notas ingleses dos anos 90? Porque eu simplesmente tinha mais
coisas a serem feitas.
“E agora, para
onde é que eu vou?”. Só para mim e minha consciência pesada, eu mantinha a fuga
que rondava pelos planos diários. E como eu imploro perdão. Pensei em desistir
de tudo para, quem sabe, ser feliz em outro lugar. Mas não, eu juro. Brotou em minh’alma
um amor que eu reguei a muito carinho e proteção por toda minha labuta. Cada
gota de suor me valia de inteiro quando observada cada sorriso se abrindo por
um mero filme e um suco pronto.
“Pés no chão é
o prazer do refrescar”. Já em casa, me apossei da caixa de fotografias que
escondia em cima do guarda-roupas. Havia duas opções: ou me livrava do passado,
ou aceitava e o fazia de escudo. A primeira foto era dos meus 15 anos. Uma
cidade de 800 habitantes. Retrato de uma garota de traços indígenas sentada
numa varanda de madeira. Casa alta, frente à leste. Uma visão singular. Imagem
dos 18, o casamento. Outra aos 23. Uma criança de dois anos e mais uma de nove
meses. O amor escolhido me envolvia com as mãos. Que proteção, céus! Que
proteção! Já aos 29, eu só. A casualidade levara embora o futuro a dois. Levara
sem aviso prévio, consideração ou um pouco de compaixão.
“Chega”, eu
grito comigo mesma. Eu dou sinal de comando e me faço capitã. Se lamentar não
me levará nem a meia milha do conforto. A paz sonhada vem da alma e de quem a
soprou. Vá bela flor, se vá. Sou de fortes origens, darei honra a quem me fez.
Vá!
E vou. Uma
fita me serve bem. Uma a uma, recordação a recordação, tacada à parede, arrastada
até a altura desejada e forçada a ser o que eu bem entendo. Um círculo de
passados. Todos amarrados aos tijolos.
Na manhã
seguinte, cedo, bem cedo, confiro a arte que eu, sapeca, havia aprontado. Voo
em devaneios e aplico a lição. É a quantia paga por ter acreditado no que não
devia. O preço por ter guiado pelo rumo errado o que já era planejado. A falha e
a culpa num conjunto de putrefato. Retratos da juventude pregados à mão nas
velhas paredes do quarto. O que era para ser concluído, se fez. Já não dava
mais para seguir trilha adentro de mata selvagem.
“Alô, alô,
marciano”. Lá vou eu descendo a ladeira, uma rodovia de pedras com a vista pro
mar. Enquanto isso, crianças brincam a par de tudo. “No final da tarde, serei
feliz”, almejei. Qualquer outra coisa é mera solidão.
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