CHAOS
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA - SALVADOR DALÍ |
Não
sabia exatamente se preferia narrar a história em primeira ou terceira pessoa.
Se em primeira, fundamentaria elementos estéticos para que eu pudesse ser
enxergada como completa pelo simples fato de estar vazia. Era a questão do
paradoxo. Deixou mais bonito os textos que li e que admitiam esse método. Já se
em terceira pessoa, abusaria dos eufemismos que minimizariam a pena que
sentiriam o público. Definitivamente, a pena me causava desgosto. Repulsivo e
ignóbil. Mesquinho demais para ser auferido por alguém. Sentimento meia-tigela
advento de uma ignorância lírica. Escreveria. Iria escrever. Diários andavam salvo
da moda, pensar em um me fez cansar. Nada de diários. Mas eu precisava contar, contar
por qualquer meio, os sufocos joviais antes que minha falha memória expurgasse o
tema.
Me
era confuso a premissa ‘ser ou não ser, eis a questão’. Sei que de fato o texto
original não tencionava tamanho cunho filosófico-romântico e, a tradução aportuguesou
o belo pelo complexo, a admiração pelo difícil. Hamlet para lá, eu mesma consenti
em cair nessa peça. O que formalmente, não compreendia. Fazia por emblema. Na
verdade, ele quis dizer: ser ou estar, eis a questão... Assim, então, que em
uma madrugada alheia me vi na necessidade de perder uma noite de sono em prol
das ponderações de juízo pessoal. É que eu estava deixando de perdurar a autopoiese
para ter o que me convinha. Estava e não era. Consequentemente, deixei de
viver. Faleci de mim sem direito a velório ou no mínimo, um discurso de
despedida. Que absurdo! O que pensaria meu pai, que lecionara por trinta e seis
temporadas a doutrina do ‘encontrar o vivaz’. Seria repreendida, óbvio!
Estando
desabitada de ânimo e ao ser soprada ao relento sem nenhum cuidado, eu ia cultivando
uma rotina encharcada de engajamentos dúbios e tristes. Quem sou? Responda
menina, responda! Okay. Lá vai. Sou aquela que acorda às cinco na marra, contudo
acredita na essencialidade das manhãs, no canto do galo e o raiar do sol visto
da cadeira de praia, do alongamento matinal, do cobertor e leite quente
aproveitados sob o muro. Essa sou eu. E quem estou? Acordo às sete. Atrasada,
atordoada. Pense no salário, pense no salário. Engula tudo, não mastigue.
Corra, corra! Olha o ônibus! Agora corra de verdade. Sente-se se der. Tome sol
se der. Observe sempre. O conjunto vazio é maior do que eu imaginara. Uau!
Eu
sou quem lê dezenas de livros mensalmente, que aprende as artes cênicas
mimificando as expressões relatadas pelo escritor. Transpasso a felicidade
literária para a realidade inquieta de encontros amorosos. Amo meus tios. Tenho
poucos. Minha mãe carece de atenção. Conversamos sobre economia, política e chow-chows.
Finalizamos a receita prometida, o cappuccino no centro da cidade e a casa por
faxinar. Vó Vanda caminha mais de três quilômetros numa tarde para visitar os
netos e presenteá-los com bolo de cenoura coberto de calda de chocolate.
Fazemos festa quando ela vem. Trocamos ilegalmente a posição dos cactos no
quintal e tagarelamos sobre os senhorezinhos que circundam lá pela vizinhança
dela não se esquecendo nunca de dar suas agradáveis saudações. Quem estou? Não vejo tia Claudete passa-se de
três anos. Dizem que depois que me mudei para cá, dois primos se casaram e uma
já tem uma filhinha que pronuncia ‘florzinha’ antecipadamente à mamãe. O tempo
voa, no final das contas. O médico recomendou menos esforços à vovó pelas
questões cardíacas. Neste ano só um cacto floresceu. O clima está mudado.
Afetou estes e também os desertos pelos quais ando me enfiando. Mainha está
jururu. É evidente. Estaria em seu lugar.
Murchei.
Minha flor não quis desabrochar. Não, não e não! Não aceito isso. Nada de
teorias conspiratórias, tá? Ser sem complicar. Quem foi que disse que a
simplicidade não é complexa? Ela mora no município da paz e exige de você no
mínimo resquícios de amorosidade e jovialidade. Trabalhar? Sim, no que gosta!
Amar? Sim, sem medo, sem modelos, sem um ritmo definido. Fingir? Não, deixe tal
anomalia de lado, chega ser feio a pseudo preocupação por todos os fatores do
mundo. Dinheiro? Com certeza! Só dinheiro? Penso que não é o correto. Ler? Ora,
qual o autor da vez? É tão fácil quanto o difícil. Confia, criatura! Certo –
respondi.
É
notório que, no outro dia, possuía olheiras profundas. Felizes estavam as
criaturinhas que, de tão roxinhas, coloriram uma feição matutina. Valeu todas
as penas desprezadas por mim no passado. Se a mudança pressupõe um raciocínio lógico
e imposição de argumentos eficientes, nisso, palmas, estava eu complacente com
a ordem. O próximo passo era enviar uma mensagem para a prima Natália e anunciar
que visitaria ela e o bebê e que, por pura gula, levaria empadinhas quentinhas.
E mais! Adivinha quem fará o bolo de cenoura e calda de chocolate? Eu mesma!
Vovó ficará boquiaberta. Ah, e quão estupenda gargalhará minha mãe ao ouvir na
ligação repentina a notícia de que nesse fim de semana ela é a convidada
especial pra uma relaxante caminhada! E claro, termino aquele livro hoje mesmo.
Farei com supremacia o que tiver por fazer. Trabalharei contente. Afinal, numa
crise de desemprego, estou muito bem empregada, obrigada.
Por
fim, a famosa confusão de tradução da frase de Shakespeare fora-me útil em sua
forma abrasileirada tanto quanto quando dissera ‘to be or not to be, that is
the question’. O diferencial fora, realmente, a luz que me acendera. Um fogo ardeu ferozmente por dentro da carne,
queimando de mim cada essência corroída de miséria criativa, amorosa, familiar,
e sem menor pudor, revolucionária. Te ofertam, às vezes, uma única e
corriqueira segunda chance. Portanto, como é que se dá a transformação vagarosa
do renascimento da mente?
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