quinta-feira, 19 de maio de 2016

CHAOS

A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA - SALVADOR DALÍ 


                                    Não sabia exatamente se preferia narrar a história em primeira ou terceira pessoa. Se em primeira, fundamentaria elementos estéticos para que eu pudesse ser enxergada como completa pelo simples fato de estar vazia. Era a questão do paradoxo. Deixou mais bonito os textos que li e que admitiam esse método. Já se em terceira pessoa, abusaria dos eufemismos que minimizariam a pena que sentiriam o público. Definitivamente, a pena me causava desgosto. Repulsivo e ignóbil. Mesquinho demais para ser auferido por alguém. Sentimento meia-tigela advento de uma ignorância lírica. Escreveria. Iria escrever. Diários andavam salvo da moda, pensar em um me fez cansar. Nada de diários. Mas eu precisava contar, contar por qualquer meio, os sufocos joviais antes que minha falha memória expurgasse o tema.
                                    Me era confuso a premissa ‘ser ou não ser, eis a questão’. Sei que de fato o texto original não tencionava tamanho cunho filosófico-romântico e, a tradução aportuguesou o belo pelo complexo, a admiração pelo difícil. Hamlet para lá, eu mesma consenti em cair nessa peça. O que formalmente, não compreendia. Fazia por emblema. Na verdade, ele quis dizer: ser ou estar, eis a questão... Assim, então, que em uma madrugada alheia me vi na necessidade de perder uma noite de sono em prol das ponderações de juízo pessoal. É que eu estava deixando de perdurar a autopoiese para ter o que me convinha. Estava e não era. Consequentemente, deixei de viver. Faleci de mim sem direito a velório ou no mínimo, um discurso de despedida. Que absurdo! O que pensaria meu pai, que lecionara por trinta e seis temporadas a doutrina do ‘encontrar o vivaz’. Seria repreendida, óbvio!
                                    Estando desabitada de ânimo e ao ser soprada ao relento sem nenhum cuidado, eu ia cultivando uma rotina encharcada de engajamentos dúbios e tristes. Quem sou? Responda menina, responda! Okay. Lá vai. Sou aquela que acorda às cinco na marra, contudo acredita na essencialidade das manhãs, no canto do galo e o raiar do sol visto da cadeira de praia, do alongamento matinal, do cobertor e leite quente aproveitados sob o muro. Essa sou eu. E quem estou? Acordo às sete. Atrasada, atordoada. Pense no salário, pense no salário. Engula tudo, não mastigue. Corra, corra! Olha o ônibus! Agora corra de verdade. Sente-se se der. Tome sol se der. Observe sempre. O conjunto vazio é maior do que eu imaginara. Uau!
                                    Eu sou quem lê dezenas de livros mensalmente, que aprende as artes cênicas mimificando as expressões relatadas pelo escritor. Transpasso a felicidade literária para a realidade inquieta de encontros amorosos. Amo meus tios. Tenho poucos. Minha mãe carece de atenção. Conversamos sobre economia, política e chow-chows. Finalizamos a receita prometida, o cappuccino no centro da cidade e a casa por faxinar. Vó Vanda caminha mais de três quilômetros numa tarde para visitar os netos e presenteá-los com bolo de cenoura coberto de calda de chocolate. Fazemos festa quando ela vem. Trocamos ilegalmente a posição dos cactos no quintal e tagarelamos sobre os senhorezinhos que circundam lá pela vizinhança dela não se esquecendo nunca de dar suas agradáveis saudações.  Quem estou? Não vejo tia Claudete passa-se de três anos. Dizem que depois que me mudei para cá, dois primos se casaram e uma já tem uma filhinha que pronuncia ‘florzinha’ antecipadamente à mamãe. O tempo voa, no final das contas. O médico recomendou menos esforços à vovó pelas questões cardíacas. Neste ano só um cacto floresceu. O clima está mudado. Afetou estes e também os desertos pelos quais ando me enfiando. Mainha está jururu. É evidente. Estaria em seu lugar.
                                    Murchei. Minha flor não quis desabrochar. Não, não e não! Não aceito isso. Nada de teorias conspiratórias, tá? Ser sem complicar. Quem foi que disse que a simplicidade não é complexa? Ela mora no município da paz e exige de você no mínimo resquícios de amorosidade e jovialidade. Trabalhar? Sim, no que gosta! Amar? Sim, sem medo, sem modelos, sem um ritmo definido. Fingir? Não, deixe tal anomalia de lado, chega ser feio a pseudo preocupação por todos os fatores do mundo. Dinheiro? Com certeza! Só dinheiro? Penso que não é o correto. Ler? Ora, qual o autor da vez? É tão fácil quanto o difícil. Confia, criatura! Certo – respondi.
                                    É notório que, no outro dia, possuía olheiras profundas. Felizes estavam as criaturinhas que, de tão roxinhas, coloriram uma feição matutina. Valeu todas as penas desprezadas por mim no passado. Se a mudança pressupõe um raciocínio lógico e imposição de argumentos eficientes, nisso, palmas, estava eu complacente com a ordem. O próximo passo era enviar uma mensagem para a prima Natália e anunciar que visitaria ela e o bebê e que, por pura gula, levaria empadinhas quentinhas. E mais! Adivinha quem fará o bolo de cenoura e calda de chocolate? Eu mesma! Vovó ficará boquiaberta. Ah, e quão estupenda gargalhará minha mãe ao ouvir na ligação repentina a notícia de que nesse fim de semana ela é a convidada especial pra uma relaxante caminhada! E claro, termino aquele livro hoje mesmo. Farei com supremacia o que tiver por fazer. Trabalharei contente. Afinal, numa crise de desemprego, estou muito bem empregada, obrigada.
                                    Por fim, a famosa confusão de tradução da frase de Shakespeare fora-me útil em sua forma abrasileirada tanto quanto quando dissera ‘to be or not to be, that is the question’. O diferencial fora, realmente, a luz que me acendera.  Um fogo ardeu ferozmente por dentro da carne, queimando de mim cada essência corroída de miséria criativa, amorosa, familiar, e sem menor pudor, revolucionária. Te ofertam, às vezes, uma única e corriqueira segunda chance. Portanto, como é que se dá a transformação vagarosa do renascimento da mente?
                                   




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